29/02/08

Até à próxima

Este blogue chega hoje ao fim.
Obrigado aos que com ele colaboraram e a todos os leitores que o visitaram ao longo dos últimos seis meses.

25/02/08

Padre António Vieira - Sermão de Santo António

Para concluir a série de textos que pretende acompanhar a língua portuguesa na sua evolução ao longo dos séculos, escolhemos um excerto de um sermão do grande vulto do barroco português (e brasileiro): o Padre António Vieira, de quem se celebra este ano o 400º aniversário de nascimento (1608-1697).
Da ordem dos jesuítas, viveu grande parte da sua vida no Brasil (onde denunciou a escravatura dos índios) e foi uma figura controversa e anti-convencional, defensor de ideias consideradas hoje modernas (viria a ser perseguido pela Inquisição por defender os “cristãos novos”, judeus convertidos recentemente ao cristianismo). Foi um dos maiores prosadores da língua portuguesa, através das suas Cartas e Sermões. A sua obra ficou também marcada pela concepção visionária do “Quinto Império” (que seria o Império Português, identificado como o reino do Espírito Santo no Terra), de índole sebastianista, do qual pretendia ser profeta e intérprete.

Consulte uma biografia do Padre António Vieira aqui.

Excerto do “Sermão de Santo António”, pregado em São Luís do Maranhão, no Brasil, em 1654:

Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.

Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. [...]

13/02/08

Sá de Miranda - O sol é grande, caem co'a calma as aves

Francisco de Sá de Miranda nasceu em Coimbra, entre 1481-1485, e morreu no Minho, em 1558, numa quinta à qual se recolheu para afastar-se da vida da corte. É considerado um dos maiores poetas do século XVI (o século de ouro da poesia portuguesa). Tendo vivido cinco anos em Itália, Sá de Miranda foi o principal introdutor em Portugal das novas formas poéticas do Renascimento, a que se convencionou chamar “medida nova” (isto é, uma medida poética mais exigente, introduzindo o decassílabo, que se conjuga com uma maior complexidade dos conteúdos), em contraste com as formas poéticas tradicionais da Península Ibérica (que a partir de então se passaram a designar “medida velha”). Tendo influenciado os demais poetas portugueses, que progressivamente foram adoptando as novas formas poéticas, Sá de Miranda não abandonou por completo, no entanto, a tradição poética peninsular: assim, da sua produção constam, por exemplo, sonetos e éclogas em medida nova (seguindo a lição do dolce stil nuovo italiano) e vilancetes e cantigas em metro tradicional.

No soneto apresentado, um dos mais belos do poeta, o poeta trata o tema da mudança, observando as transições na natureza e comparando-as consigo mesmo (“também mudando-m’eu fiz doutras cores”), verificando que não possui no entanto a mesma capacidade de renovação.


O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
Também mudando-m’eu fiz doutras cores:
E tudo o mais renova, isto é sem cura!


VOCABULÁRIO
sazão – estação; sói (verbo soer) – costuma; cuidados – pensamentos, preocupações.

07/02/08

Gil Vicente - Farsa de Inês Pereira

Imagem que acompanha a edição dos Autos de Gil Vicente

Gil Vicente (1465-1536) foi um importante dramaturgo, considerado o pai do teatro português e a sua figura mais saliente. Compôs a sua vasta obra (cerca de 50 autos, isto é, peças de teatro) entre 1502 e 1536, tendo representado as peças nas cortes reais. As raízes do teatro vicentino estão na produção teatral medieval de origem francesa. Aliás, a sua estética e a sua linguagem são marcadamente medievais, apesar de na sua obra se reflectirem as profundas mudanças da sociedade portuguesa ligadas aos descobrimentos (é frequente o contraste entre o mundo antigo, ligado ao cultivo da terra e a valores tradicionais, e o mundo novo, ligado à exploração marítima e a usos e costumes inovadores). Gil Vicente escreveu muitas moralidades (peças essencialmente doutrinais), mas as peças mais marcantes e que mantêm maior actualidade são as que têm maior componente satírica: as “barcas” (peças em que embarcações comandadas por um diabo e por um anjo conduziam os mortos ao inferno ou ao paraíso, e que tinham como missão alertar para os pecados sociais através de personagens-tipo ao mesmo tempo que divertiam o público) e as farsas (de essência recreativa e ao gosto popular, sem terem necessariamente intenção moralizante).

Apresentamos de seguida dois excertos da Farsa de Inês Pereira, que foi representada pela primeira vez em 1953. Tendo como mote o dito “Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube”, é a história da ambiciosa Inês Pereira, jovem casadoira e sonhadora, que pretende arranjar marido “discreto” e que saiba “tanger viola”, para passar o resto da vida a cantarolar. A Mãe, bastante mais prática, representa a voz da experiência e, pensando na estabilidade do futuro da filha, aconselha-a a casar com Pero Marques, um rústico proprietário, que Inês rejeita imediatamente, por o considerar simplório (o “asno”). Por entre várias peripécias, Inês consegue casar com um escudeiro galante, mas falido (o “cavalo”). Rapidamente, a realidade do casamento fá-la compreender que foi enganada pelas suas ilusões (o escudeiro impede-a de cantar e fecha-a em casa). Morto o marido na guerra, e amadurecida com a experiência, aceita então como marido o vilão que previamente rejeitara, Pero Marques.
Neste primeiro extracto da peça, Pero Marques, homem rústico, inábil com as palavras, ignorante dos costumes da cidade (não sabe como se sentar numa cadeira) e apegado aos valores tradicionais, apresenta-se à Mãe, que, prática e prudente, logo fica entusiasmada ao saber que ele tem posses. Quanto a Inês, o seu desagrado é evidente.

Chega Pero Marques aonde elas estão, e diz:
PERO
Digo que esteis muito embora.
Folguei ora de vir cá…
Eu vos escrevi de lá
a cartinha, senhora…
Assim que… e de maneira…
MÃE
Tomai aquela cadeira.
PERO
E que val aqui uma destas?
INÊS
(Oh Jesus! Que Jão das Bestas!
Olhai aquela canseira!)

Assentou-se com as costas para elas e diz:

Eu cuido que não estou bem…
MÃE
Como vos chamam, amigo?
PERO
Eu Pero Marques me digo,
como meu pai, que Deus tem.
Faleceu, perdoe-lhe Deus!,
que fora bem escusado,
e ficamos dois eréus.
Porém, meu é o morgado.
MÃE
De morgado é vosso estado?
Isso viria dos céus.

e que val aqui: para que serve?; eréus: herdeiros; morgado: conjunto de bens que não se podiam dividir que eram transmitidos ao filho primogénito.


Pouco depois, Pero Marques interage com Inês, proporcionando momentos cómicos: traz como presente umas pêras, que colocara no fundo do capelo (tipo de chapéu) juntamente com objectos da vida pastorícia e um pente, mas ela não as encontra; e, para espanto de Inês, não consente em ficar sozinho com ela, sem a presença da Mãe, receando comprometer a sua boa reputação. Quando Pero Marques sugere a Inês que chamem Lianor Vaz (a alcoviteira, isto é, a mulher que arranja os casamentos), a jovem diz-lhe claramente que não está interessada na oferta.

[…]
PERO
Cuido que lhe trago aqui
peras da minha pereira:
hão-de estar na derradeira.
Tende ora, Inês, por i.
INÊS
E isso hei-de ter na mão?
PERO
Deitai as peias no chão.
INÊS
As perlas para enfiar,
três chocalhos e um novelo,
e as peias no capelo…
E as peras, onde estão?
PERO
Nunca tal me aconteceu…
Algum rapaz mas comeu,
que as meti no capelo,
e ficou aqui o novelo,
e o pente não se perdeu.
Pois trazia-as de boa mente…
INÊS
Fresco vinha o presente,
com folhinhas borrifadas…
PERO
Não, que elas vinham chentadas
cá no fundo, no mais quente.

Vossa mãe foi-se? Ora bem!
Sós nos deixou ela assi,
cant’eu quero-me ir daqui,
não diga algum demo alguém …
INÊS
E vós, que havíeis de fazer,
nem ninguém que há-de dizer?
(O galante despejado!)
PERO
Se eu fora já casado,
doutra arte havia de ser…
como homem de bom recado.

INÊS
(Quão desviado este está!
Todos andam por caçar
suas damas sem casar,
e este… tomade-o lá!).
PERO
Vossa mãe é lá no muro.
INÊS
Minha mãe eu vos seguro
que ela venha cá dormir.
PERO
Pois, senhora, quero-me ir,
antes que venha o escuro.

Virá cá Lianor Vaz,
veremos que lhe dizeis.
INÊS
Homem, não aporfieis,
que não quero, nem me praz.
Ide casar a Cascais!

peias: laços com que se prendem as patas dos animais para os impedir de andar; chocalhos: campainha de metal com badalo que os animais levam ao pescoço para anunciarem a sua presença; novelo: bola formada de fio enrolado; chentadas: metidas; doutra arte: doutra forma; aporfiar: insistir; nem me praz: nem me agrada

03/02/08

Cantigas de amigo 4

Nesta cantiga de Pero Meogo, que, embora sem narrador identificado, é claramente uma cantiga de amigo, pode ler-se a encenação de um ritual nupcial (a purificação pela lavagem de cabelos) antes do encontro com o amigo (o cervo turvando a água é uma imagem com conotação sexual evidente).

Pero Meogo – “Levóus’ a louçana, levóus’ a velida”

Levóus’ a louçana, levous’ a velida,
vai lavar cabelos na fontana fria
leda dos amores, dos amores leda.

Levóus’ a velida, levous’ a louçana,
vai lavar cabelos na fria fontana
leda dos amores, dos amores leda.

Vai lavar cabelos na fontana fria,
passou seu amigo que lhi ben queria,
leda dos amores, dos amores leda.

Vai lavar cabelos na fria fontana,
passa seu amigo que muit’ a amava,
leda dos amores, dos amores leda.

Passa seu amigo que lhi ben queria
o cervo do monte a augua volvía,
leda dos amores, dos amores leda.

Passa seu amigo que a muito amava
o cervo do monte volvía a augua,
leda dos amores, dos amores leda.


levóus' - levantou-se; velida – bonita; leda - contente

Cantigas de amigo 3

Nesta cantiga de amigo de Juião Bolseiro, a rapariga queixa-se das noites demasiado longas em que, sozinha, não consegue dormir e compara-as com as noites que passou com o amigo, que eram bem mais breves…

Juião Bolseiro – “Aquestas noites tan longas que Deus fez en grave dia”

Aquestas noites tan longas que Deus fez en grave dia
por mi, porque as non dórmio, e por que as non fazia
no tempo que meu amigo
soia falar comigo?

Porque as fez Deus tan grandes, non posso eu dormir, coitada!
e, de como son sobejas, quisera-m’ outra vegada
no tempo que meu amigo
soia falar comigo.

Porque as Deus fez tan grandes sen mesura desiguaes
e as eu dormir non posso, porque as non fez ataes
no tempo que meu amigo
soia falar comigo?

Aquestas – estas; dórmio – durmo; soia – costumava; sobejas – exageradamente longas; vegada – vez; ataes – como tal, desta maneira.