07/02/08

Gil Vicente - Farsa de Inês Pereira

Imagem que acompanha a edição dos Autos de Gil Vicente

Gil Vicente (1465-1536) foi um importante dramaturgo, considerado o pai do teatro português e a sua figura mais saliente. Compôs a sua vasta obra (cerca de 50 autos, isto é, peças de teatro) entre 1502 e 1536, tendo representado as peças nas cortes reais. As raízes do teatro vicentino estão na produção teatral medieval de origem francesa. Aliás, a sua estética e a sua linguagem são marcadamente medievais, apesar de na sua obra se reflectirem as profundas mudanças da sociedade portuguesa ligadas aos descobrimentos (é frequente o contraste entre o mundo antigo, ligado ao cultivo da terra e a valores tradicionais, e o mundo novo, ligado à exploração marítima e a usos e costumes inovadores). Gil Vicente escreveu muitas moralidades (peças essencialmente doutrinais), mas as peças mais marcantes e que mantêm maior actualidade são as que têm maior componente satírica: as “barcas” (peças em que embarcações comandadas por um diabo e por um anjo conduziam os mortos ao inferno ou ao paraíso, e que tinham como missão alertar para os pecados sociais através de personagens-tipo ao mesmo tempo que divertiam o público) e as farsas (de essência recreativa e ao gosto popular, sem terem necessariamente intenção moralizante).

Apresentamos de seguida dois excertos da Farsa de Inês Pereira, que foi representada pela primeira vez em 1953. Tendo como mote o dito “Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube”, é a história da ambiciosa Inês Pereira, jovem casadoira e sonhadora, que pretende arranjar marido “discreto” e que saiba “tanger viola”, para passar o resto da vida a cantarolar. A Mãe, bastante mais prática, representa a voz da experiência e, pensando na estabilidade do futuro da filha, aconselha-a a casar com Pero Marques, um rústico proprietário, que Inês rejeita imediatamente, por o considerar simplório (o “asno”). Por entre várias peripécias, Inês consegue casar com um escudeiro galante, mas falido (o “cavalo”). Rapidamente, a realidade do casamento fá-la compreender que foi enganada pelas suas ilusões (o escudeiro impede-a de cantar e fecha-a em casa). Morto o marido na guerra, e amadurecida com a experiência, aceita então como marido o vilão que previamente rejeitara, Pero Marques.
Neste primeiro extracto da peça, Pero Marques, homem rústico, inábil com as palavras, ignorante dos costumes da cidade (não sabe como se sentar numa cadeira) e apegado aos valores tradicionais, apresenta-se à Mãe, que, prática e prudente, logo fica entusiasmada ao saber que ele tem posses. Quanto a Inês, o seu desagrado é evidente.

Chega Pero Marques aonde elas estão, e diz:
PERO
Digo que esteis muito embora.
Folguei ora de vir cá…
Eu vos escrevi de lá
a cartinha, senhora…
Assim que… e de maneira…
MÃE
Tomai aquela cadeira.
PERO
E que val aqui uma destas?
INÊS
(Oh Jesus! Que Jão das Bestas!
Olhai aquela canseira!)

Assentou-se com as costas para elas e diz:

Eu cuido que não estou bem…
MÃE
Como vos chamam, amigo?
PERO
Eu Pero Marques me digo,
como meu pai, que Deus tem.
Faleceu, perdoe-lhe Deus!,
que fora bem escusado,
e ficamos dois eréus.
Porém, meu é o morgado.
MÃE
De morgado é vosso estado?
Isso viria dos céus.

e que val aqui: para que serve?; eréus: herdeiros; morgado: conjunto de bens que não se podiam dividir que eram transmitidos ao filho primogénito.


Pouco depois, Pero Marques interage com Inês, proporcionando momentos cómicos: traz como presente umas pêras, que colocara no fundo do capelo (tipo de chapéu) juntamente com objectos da vida pastorícia e um pente, mas ela não as encontra; e, para espanto de Inês, não consente em ficar sozinho com ela, sem a presença da Mãe, receando comprometer a sua boa reputação. Quando Pero Marques sugere a Inês que chamem Lianor Vaz (a alcoviteira, isto é, a mulher que arranja os casamentos), a jovem diz-lhe claramente que não está interessada na oferta.

[…]
PERO
Cuido que lhe trago aqui
peras da minha pereira:
hão-de estar na derradeira.
Tende ora, Inês, por i.
INÊS
E isso hei-de ter na mão?
PERO
Deitai as peias no chão.
INÊS
As perlas para enfiar,
três chocalhos e um novelo,
e as peias no capelo…
E as peras, onde estão?
PERO
Nunca tal me aconteceu…
Algum rapaz mas comeu,
que as meti no capelo,
e ficou aqui o novelo,
e o pente não se perdeu.
Pois trazia-as de boa mente…
INÊS
Fresco vinha o presente,
com folhinhas borrifadas…
PERO
Não, que elas vinham chentadas
cá no fundo, no mais quente.

Vossa mãe foi-se? Ora bem!
Sós nos deixou ela assi,
cant’eu quero-me ir daqui,
não diga algum demo alguém …
INÊS
E vós, que havíeis de fazer,
nem ninguém que há-de dizer?
(O galante despejado!)
PERO
Se eu fora já casado,
doutra arte havia de ser…
como homem de bom recado.

INÊS
(Quão desviado este está!
Todos andam por caçar
suas damas sem casar,
e este… tomade-o lá!).
PERO
Vossa mãe é lá no muro.
INÊS
Minha mãe eu vos seguro
que ela venha cá dormir.
PERO
Pois, senhora, quero-me ir,
antes que venha o escuro.

Virá cá Lianor Vaz,
veremos que lhe dizeis.
INÊS
Homem, não aporfieis,
que não quero, nem me praz.
Ide casar a Cascais!

peias: laços com que se prendem as patas dos animais para os impedir de andar; chocalhos: campainha de metal com badalo que os animais levam ao pescoço para anunciarem a sua presença; novelo: bola formada de fio enrolado; chentadas: metidas; doutra arte: doutra forma; aporfiar: insistir; nem me praz: nem me agrada

Sem comentários: