Nesta cantiga de amigo de Mendinho, a rapariga encontra-se numa ermida (capela edificada num lugar ermo, fora da povoação), esperando o amigo; e o mar alto ameaça-a. Como não tem barqueiro nem sabe remar, está dependente da chegada do amigo para se salvar. Sendo o mar normalmente tranquilo em San Simión (na Galiza), podemos deduzir que esta ameaça é sobretudo psicológica.
Mendinho – “Sedia-m’eu na ermida de San Simión”
Sedia-m’ eu na ermida de San Simión
e cercaron-mi-as ondas que grandes son.
Eu atendend’ o meu amigu’! E verrá?
Estando na ermida, ant’ o altar,
cercaron-mi-as ondas grandes do mar
Eu atendend’ o meu amigu’! E verrá?
E cercaron-mi-as as ondas que grandes son
non ei [i] barqueiro nen remador
Eu atendend’ o meu amigu’! E verrá?
E cercaron-mi-as ondas do alto mar:
non ei [i] barqueiro nen sei remar.
Eu atendend’ o meu amigu’! E verrá?
Non ei i barqueiro nen remador:
morrerei [eu], fremosa, no mar maior.
Eu atendend’ o meu amigu’! E verrá?
Non ei [i] barqueiro nen sei remar:
morrerei eu, fremosa, no alto mar.
Eu atendend’ o meu amigu’! E verrá?
31/01/08
28/01/08
Cantigas de amigo 1
Nesta cantiga de amigo de Bernal de Bonaval, a rapariga partilha com uma confidente não identificada o seu desejo de rever brevemente o amigo, de quem lamenta as ausências demasiado longas.
Bernal de Bonaval – “Se vehess’o meu amigo”
Se vehess’ o meu amigo
a Bonaval e me visse,
vedes como lh’ eu diria
ante que m’ eu d’ el partisse:
“Se vos fordes, non tardedes
tan muyto como soedes”.
Diria-lh’ eu: “Non tardedes,
amigo, como soedes”.
Diria-lh’ eu: “Meu amigo,
se vós a min muyt’ amades,
fazede por mi atanto,
que bona ventura ajades!
Se vos fordes, non tardedes
tan muyto como soedes”.
Diria-lh’ eu: “Non tardedes,
[amigo, como soedes]”.
Que leda que eu seria
se vehess’ el falar migo!
E, ao partir da fala,
diria-lh’ eu: “Meu amigo,
se vos fordes, non tardedes
tan muyto como soedes”.
Diria-lh’ eu: “Non tardedes,
[amigo, como soedes”.
vehess’ – viesse; Bonaval – região do norte peninsular de onde era originário o compositor da cantiga; tan muyto - tanto; como soedes – como costumais; ajades - hajais; leda – contente; migo - comigo
Bernal de Bonaval – “Se vehess’o meu amigo”
Se vehess’ o meu amigo
a Bonaval e me visse,
vedes como lh’ eu diria
ante que m’ eu d’ el partisse:
“Se vos fordes, non tardedes
tan muyto como soedes”.
Diria-lh’ eu: “Non tardedes,
amigo, como soedes”.
Diria-lh’ eu: “Meu amigo,
se vós a min muyt’ amades,
fazede por mi atanto,
que bona ventura ajades!
Se vos fordes, non tardedes
tan muyto como soedes”.
Diria-lh’ eu: “Non tardedes,
[amigo, como soedes]”.
Que leda que eu seria
se vehess’ el falar migo!
E, ao partir da fala,
diria-lh’ eu: “Meu amigo,
se vos fordes, non tardedes
tan muyto como soedes”.
Diria-lh’ eu: “Non tardedes,
[amigo, como soedes”.
vehess’ – viesse; Bonaval – região do norte peninsular de onde era originário o compositor da cantiga; tan muyto - tanto; como soedes – como costumais; ajades - hajais; leda – contente; migo - comigo
Cantigas de amor 2
Nesta cantiga de amor de Dom Dinis (o rei lavrador e, também, poeta), o compositor propõe-se fazer o elogio da amanda, enumerando as suas virtudes, "em maneira de provençal".
Don Deniz – “Quer’eu em maneira de proençal”
Quer’eu em maneira de proençal
faze agora um cantar d’ amor,
e querrei muit’ i loar mha senhor
a que prez nem fremosura non fal,
nem bondade; e mais vos direi em:
tanto a fez Deus comprida de bem
que mais que todas las do mundo val.
Ca mha senhor quizo Deus fazer tal,
quando a fez, que a fez sabedor
de todo bem e de mui gram valor,
e com tod’ est[o] é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bom sem,
e desi nom lhi fez pouco de bem
quando nom quis que lh’outra foss’ igual.
Ca em mha senhor nunca Deus pos mal,
mais pos i prez e beldad’ e loor
e falar mui bem, e riir melhor
que outra molher; desi é leal
muit’, e por esto nom sei oj’ eu quem
possa compridamente no seu bem
falar, ca nom a, tra-lo seu bem, al.
i – aí; loar – louvar; mha – minha; non fal – não faltam; em - disso; val – vale; gram – grande; mui comunal - muito comum; bon sem - bom senso; desi - disso; nom lhi fez pouco de bem - fê-lo muito bem; prez - mérito; oj’ – hoje; ca nom a, tra-lo seu bem, al – não tem, além do seu bem, nada (quem dela falar só pode falar do seu bem).
Don Deniz – “Quer’eu em maneira de proençal”
Quer’eu em maneira de proençal
faze agora um cantar d’ amor,
e querrei muit’ i loar mha senhor
a que prez nem fremosura non fal,
nem bondade; e mais vos direi em:
tanto a fez Deus comprida de bem
que mais que todas las do mundo val.
Ca mha senhor quizo Deus fazer tal,
quando a fez, que a fez sabedor
de todo bem e de mui gram valor,
e com tod’ est[o] é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bom sem,
e desi nom lhi fez pouco de bem
quando nom quis que lh’outra foss’ igual.
Ca em mha senhor nunca Deus pos mal,
mais pos i prez e beldad’ e loor
e falar mui bem, e riir melhor
que outra molher; desi é leal
muit’, e por esto nom sei oj’ eu quem
possa compridamente no seu bem
falar, ca nom a, tra-lo seu bem, al.
i – aí; loar – louvar; mha – minha; non fal – não faltam; em - disso; val – vale; gram – grande; mui comunal - muito comum; bon sem - bom senso; desi - disso; nom lhi fez pouco de bem - fê-lo muito bem; prez - mérito; oj’ – hoje; ca nom a, tra-lo seu bem, al – não tem, além do seu bem, nada (quem dela falar só pode falar do seu bem).
Cantigas de amor 1
Nesta cantiga de amor de Johan Soarez Coelho, o narrador recorda um encontro com a sua senhor em que esta o ignorou, não o quis ouvir nem lhe quis falar: não lhe disse mal nem bem. O sofrimento sentido pelo amador foi tal que ele lamenta não ter morrido (tan sen ventura foi que non morri!) já que a morte (mesmo repetida mil vezes) teria sido um sofrimento mais suportável do que o desdém da amada.
Johan Soarez Coelho - “Noutro dia, quando m’eu espedi”
Noutro dia, quando m’eu espedi
de mia senhor, e quando mi-ouv’ a ir
e me non falou, nen me quis oïr,
tan sen ventura foi que non morri!
Que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!
U lh’eu dizi: “con graça, mia senhor”!
catou-me um pouqu’ e teve-mi en desden;
e porque me non disso mal nen ben,
fiquei coitad(o), e con tan gran pavor
que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!
E sei mui ben, u me d’ela quitei
e m’end’eu fui, e non me quis falar,
ca, pois ali non morri con pesar,
nunca jamais con pesar morrerei:
que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!
espedir –despedir; oïr – ouvir; u – quando / onde; mĕor – menor; catar – procurar; quitar – afastar; ca – porque; ende – por isso.
Johan Soarez Coelho - “Noutro dia, quando m’eu espedi”
Noutro dia, quando m’eu espedi
de mia senhor, e quando mi-ouv’ a ir
e me non falou, nen me quis oïr,
tan sen ventura foi que non morri!
Que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!
U lh’eu dizi: “con graça, mia senhor”!
catou-me um pouqu’ e teve-mi en desden;
e porque me non disso mal nen ben,
fiquei coitad(o), e con tan gran pavor
que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!
E sei mui ben, u me d’ela quitei
e m’end’eu fui, e non me quis falar,
ca, pois ali non morri con pesar,
nunca jamais con pesar morrerei:
que, se mil vezes podesse morrer,
mĕor coita me fora de soffrer!
espedir –despedir; oïr – ouvir; u – quando / onde; mĕor – menor; catar – procurar; quitar – afastar; ca – porque; ende – por isso.
Lírica galaico-portuguesa
Ao longo das próximas semanas, publicar-se-á uma série de textos (ou de excertos de textos) literários que pretendem acompanhar as evoluções da língua portuguesa ao longo dos séculos.
Começaremos, esta semana, por publicar cantigas medievais da lírica galaico-portuguesa (ou galego-portuguesa), isto é, escritas no dialecto galego-português que viria a originar a língua portuguesa (e a galega). Foram produzidas entre os finais do século XII e os inícios do século XIV. As composições mais conhecidas são as cantigas de amor e as cantigas de amigo, mas também existem cantigas de escárnio (sátiras que apontavam personalidades ou grupos sociais) e cantigas de índole religiosa, como as cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio. Escolhemos publicar apenas exemplos de cantigas de amor e de cantigas de amigo. As cantigas apresentadas seguem a edição de Mercedes Brea da Lírica Profana Galego-Portuguesa (Santiago de Compostela, Centro Ramón Piñeiro, Xunta de Galicia, 1996).
As cantigas de amor tiveram como inspiração o amor cortês da cansó provençal. De acordo com o ideal de amor puro dos troubadours occitânicos e com os rituais fortemente devedores do imaginário feudal desta poesia, o poeta devia louvar a sua senhor (a amada). O ambiente é o da corte e, nas primeiras composições, a senhor é geralmente uma mulher casada; posteriormente, os compositores escrevem também para as raparigas solteiras, com dote. Os códigos de conduta a que compositores devem obedecer são severos e ditam regras estritas de cortesia e de discrição. O amador oferece-se à senhor sem revelar o seu nome; esta, altiva e distante, pondera a hipótese de lhe oferecer a sua mercê (a recompensa) ou o desdém. Na maior parte das cantigas é realçada a coita (o sofrimento) do compositor, chegando a encenar-se a morte de amor.
Quanto às cantigas de amigo, diferem das de amor em primeiro lugar porque o sujeito enunciador é uma rapariga, uma novidade relativamente à cansó provençal. Esta rapariga, geralmente afastada do ambiente cortesão das cantigas de amor, partilha com as suas confidentes (a mãe, as amigas, a natureza) os seus sentimentos: a alegria por rever o amigo, as saudades que dele sente ou os planos que faz para o futuro. São cantigas mais realistas, alegres e variadas, explorando uma maior gama de sentimentos. São também cantigas que comportam uma forte carga simbólica e, por vezes, um subtexto erótico. Não se conhecem com rigor as origens das cantigas de amigo, mas supõe-se que uma poesia pré-cortês terá constituído uma tradição peninsular, possivelmente enriquecida com influências da poesia árabe, e que, repensada com a lição trovadoresca, terá influenciado as cantigas de amigo.
Começaremos, esta semana, por publicar cantigas medievais da lírica galaico-portuguesa (ou galego-portuguesa), isto é, escritas no dialecto galego-português que viria a originar a língua portuguesa (e a galega). Foram produzidas entre os finais do século XII e os inícios do século XIV. As composições mais conhecidas são as cantigas de amor e as cantigas de amigo, mas também existem cantigas de escárnio (sátiras que apontavam personalidades ou grupos sociais) e cantigas de índole religiosa, como as cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio. Escolhemos publicar apenas exemplos de cantigas de amor e de cantigas de amigo. As cantigas apresentadas seguem a edição de Mercedes Brea da Lírica Profana Galego-Portuguesa (Santiago de Compostela, Centro Ramón Piñeiro, Xunta de Galicia, 1996).
As cantigas de amor tiveram como inspiração o amor cortês da cansó provençal. De acordo com o ideal de amor puro dos troubadours occitânicos e com os rituais fortemente devedores do imaginário feudal desta poesia, o poeta devia louvar a sua senhor (a amada). O ambiente é o da corte e, nas primeiras composições, a senhor é geralmente uma mulher casada; posteriormente, os compositores escrevem também para as raparigas solteiras, com dote. Os códigos de conduta a que compositores devem obedecer são severos e ditam regras estritas de cortesia e de discrição. O amador oferece-se à senhor sem revelar o seu nome; esta, altiva e distante, pondera a hipótese de lhe oferecer a sua mercê (a recompensa) ou o desdém. Na maior parte das cantigas é realçada a coita (o sofrimento) do compositor, chegando a encenar-se a morte de amor.
Quanto às cantigas de amigo, diferem das de amor em primeiro lugar porque o sujeito enunciador é uma rapariga, uma novidade relativamente à cansó provençal. Esta rapariga, geralmente afastada do ambiente cortesão das cantigas de amor, partilha com as suas confidentes (a mãe, as amigas, a natureza) os seus sentimentos: a alegria por rever o amigo, as saudades que dele sente ou os planos que faz para o futuro. São cantigas mais realistas, alegres e variadas, explorando uma maior gama de sentimentos. São também cantigas que comportam uma forte carga simbólica e, por vezes, um subtexto erótico. Não se conhecem com rigor as origens das cantigas de amigo, mas supõe-se que uma poesia pré-cortês terá constituído uma tradição peninsular, possivelmente enriquecida com influências da poesia árabe, e que, repensada com a lição trovadoresca, terá influenciado as cantigas de amigo.
20/01/08
Um poema por semana
Noutros Lugares, de Jorge de Sena
Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exactamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
1967
Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exactamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
1967
13/01/08
Aquela esperança de tudo se ajeitar
Trocando em miúdos (Francis Hime - Chico Buarque, 1978)
Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim ?
O resto é seu
Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças
Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter
Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado
Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu
Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde
VOCABULÁRIO:
medida do Bonfim – fita típica de Salvador da Baía, usada em torno do pulso com 3 nós, simbolizando 3 desejos que devem ser pedidos e que, segundo a superstição, se realizarão quando o tecido da fita se corroer.
Pixinguinha (1897-1973) – compositor de Música Popular Brasileira (MPB).
ajeitar - resolver (Br. "dar um jeito": arranjar forma de resolver um problema)
empenhar – entregar como garantia ou hipoteca de um empréstimo.
dilacerado – despedaçado, quebrado.
aluguel (Br.), aluguer (Pt.) – renda da casa.
alarde – estrondo, barulho.
saideira (Br.) - última bebida tomada (geralmente de sair de um bar).
Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim ?
O resto é seu
Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças
Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter
Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado
Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu
Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde
VOCABULÁRIO:
medida do Bonfim – fita típica de Salvador da Baía, usada em torno do pulso com 3 nós, simbolizando 3 desejos que devem ser pedidos e que, segundo a superstição, se realizarão quando o tecido da fita se corroer.
Pixinguinha (1897-1973) – compositor de Música Popular Brasileira (MPB).
ajeitar - resolver (Br. "dar um jeito": arranjar forma de resolver um problema)
empenhar – entregar como garantia ou hipoteca de um empréstimo.
dilacerado – despedaçado, quebrado.
aluguel (Br.), aluguer (Pt.) – renda da casa.
alarde – estrondo, barulho.
saideira (Br.) - última bebida tomada (geralmente de sair de um bar).
Um poema por semana
Sobre o lado esquerdo, de Carlos de Oliveira
De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: “o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração”.
in Sobre o lado esquerdo, 1968
De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: “o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração”.
in Sobre o lado esquerdo, 1968
12/01/08
Novo aeroporto internacional de Lisboa
O governo anunciou que o novo aeroporto internacional de Lisboa será construído na Margem Sul, em Alcochete. As razões para a escolha neste vídeo do canal SIC Notícias.
09/01/08
Sobre o acordo ortográfico - uma opinião pessoal
Recentemente, a perspectiva da entrada em vigor do Acordo Ortográfico que visa unificar as normas de Portugal e do Brasil tem provocado alguma celeuma em Portugal. Como português, darei a minha opinião sobre o assunto, tendo em conta, naturalmente, as críticas que de Portugal se têm feito sentir. As vozes mais discordantes insurgem-se contra um acordo que, acusam, empobrece a língua e desrespeita a sua matriz. Outros vêem no acordo uma conjura com o mero objectivo de facilitar a penetração das editoras brasileiras nos países africanos de língua oficial portuguesa, cujo mercado tem favorecido, até ao presente, as editoras portuguesas. Há quem considere que os elevados custos que o acordo acarretará (desactualização de dicionários, de gramáticas e de prontuários, revisão de edições, etc.) não o justificam. Por fim, há quem evoque razões afectivas para boicotar o novo acordo a que, asseguram, nunca se submeterão: “Toda a vida escrevi acção com dois c… Nunca ninguém me poderá agora obrigar a escrever ação em vez de acção…”.
Este último aspecto parece-me o de mais simples contestação: resistentes às alterações ortográficas sempre os houve e sempre os haverá. Tenho familiares que apostrofam a contracção da preposição de com o pronome ele (“d’ele”). Talvez ainda haja algum centenário que escreva pharmácia, embora a abolição do grupo consonântico -ph- date de 1911. São teimas que apenas atestam que somos animais de hábitos. Daqui a 100 anos, haverá talvez quem ainda escreva acção, mesmo que entretanto tenha entrado em vigor o acordo que elimina as consoantes mudas. É a vida.
Começarei por recuar a esse ano de 1911, data de oficialização da reforma ortográfica em Portugal (uma medida simbólica que sucede à implementação da República, em 1910). Essa reforma aboliu grupos consonânticos, como -ph- ou -th-, e o uso da maior parte das consoantes duplas, como -ll-. A nova grafia foi adoptada exclusivamente em Portugal; o Brasil manteria por mais alguns anos a ortografia tradicional, tão adequada aos poetas parnasianos serôdios de que os escritores modernistas viriam a escarnecer alguns anos depois. Um acordo posterior entre Portugal e o Brasil, em 1931, previa a anulação das consoantes mudas (sim, em 1931, Portugal já se tinha decidido a passar a escrever ação!), mas depois Portugal não cumpriu esse acordo em 1945, em tempos de exaltação nacionalista (confronte-se a esse respeito o artigo de D’Silvas Filho que rebate os argumentos contra o acordo ortográfico no sítio Ciberdúvidas aqui).
Em 1990, finalmente, definiu-se o novo acordo ortográfico, aquele de que agora falamos, que exigia a ratificação de todos os países de língua oficial portuguesa e que foi ratificado unicamente por Portugal, pelo Brasil e por Cabo Verde. Como os outros países não o chegaram a ratificar, o acordo ficou na gaveta; mas, na verdade, Portugal, em 1991, já ratificou o acordo que agora suscita tanta contestação (sim, em 1991, Portugal já tinha reiterado a sua decisão de passar a escrever ação!). Como geralmente acontece em Portugal, muita gente não deu por isso ou, se deu por alguma coisa, entretanto esqueceu-se (para só agora acordar aos brados contra este acordo decidido “de repente” e “sem debate público”). Em 2004, foi decidido consensualmente que bastaria a ratificação de três países para que o acordo entrasse em vigor. Ratificaram-no desde então o Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – virtualmente, o acordo já poderia, pois, avançar. Quanto a Portugal, o governo anunciou que pretendia ratificar o acordo até ao fim de 2007 mas em Dezembro o processo foi remetido para o ano de 2008 (leia-se a notícia no Diário Digital aqui)
Não me parece necessário demorar-me sobre a noção de que uma língua é um corpo vivo e em permanente evolução. Também não vou entrar em considerações sobre a evolução da sintaxe ou do léxico das línguas. Atenho-me à ortografia, que, em quase todas as línguas, tende a simplificar-se e a acompanhar a expressão oral. Há quem veja nesse facto uma cedência à preguiça, uma rejeição das raízes de uma língua ou uma corrupção do seu grau de pureza. Pessoalmente, considero-o um fenómeno normal, inelutável e sadio. Penso também que, mais do que nunca, uma ortografia unificada para todos os países de língua portuguesa se impõe como uma necessidade. O português é a única grande língua ocidental com dois sistemas ortográficos diferentes, um português e outro brasileiro. Não há razão para que coexistam duas normas ortográficas quando o que está em causa é, afinal, a manutenção ou não de umas quantas consoantes mudas e de uns quantos acentos.
Exponho de forma abreviada as alterações que o acordo ortográfico introduz:
- eliminação de alguns acentos, medida que altera ambas as variantes (vêem → veem) ou a variante brasileira (vôo, idéia → voo, ideia);
- eliminação do trema (freqüência → frequência), medida que altera a variante brasileira;
- eliminação de muitas consoantes mudas em grupos consonânticos (acção, óptimo, eléctrico → ação, ótimo, elétrico), medida que altera a norma portuguesa;
- simplificação e uniformização das regras do uso do hífen e das maiúsculas;
- introdução das letras k, w, y no alfabeto português (estas letras estão presentes em muitas palavras de países africanos que entretanto foram incorporadas ao léxico português).
Para informação pormenorizada, consulte-se a secção “Novo Acordo Ortográfico” da página do sítio pessoal de D’Silvas Filho que analisa a questão aqui.
Os detractores do acordo argumentam, com razão, que não são as diferenças ortográficas que causam incompreensão. Há algumas semanas, na sua crónica do semanário Expresso, Miguel Sousa Tavares (jornalista e autor de romances que se tornaram best-sellers em Portugal), que aponta como “objectivo único” do acordo “pôr-nos a escrever como os brasileiros”, orgulhava-se de o seu romance Equador ter vendido cerca de 50.000 exemplares no Brasil, apesar de ele não ter cedido às insistências da editora brasileira no sentido de adaptar a grafia à norma brasileira. Ora, como português, eu não tenho nenhuma dificuldade em perceber a frase “a direção da empresa teve uma idéia ótima”; e não me espanta que os leitores brasileiros possuam uma competência análoga, compreendendo perfeitamente a frase “a direcção da empresa teve uma ideia óptima” (embora para alguns portugueses esse facto possa parecer surpreendente…).
É evidente que não é a ortografia o principal factor da divergência entre as normas portuguesa e brasileira. Também me parece evidente que acordo algum terá jamais o intuito (e muito menos o poder) de anular essa divergência, decretando, por exemplo, em Portugal, a substituição da perífrase “estar a + infinitivo” pela forma correspondente, de uso no Brasil, “estar + gerúndio”; ou exigindo aos brasileiros que antecedam os possessivos de artigo definido, como acontece na norma portuguesa. É que não são os acordos que têm o poder de alterar a língua, são os falantes (de resto, o acordo ortográfico só interfere naquilo em que pode interferir: a ortografia).
Quando Sousa Tavares escreve, no fim do seu artigo, “orgulho-me de ter feito bem mais pela nossa língua no Brasil [com as vendas do romance Equador] do que todos esses que se dispõem a vendê-la como coisa velha e descartável” há que reflectir em nome de que “nossa língua” se exprime. A língua portuguesa não é hoje um bem que os portugueses possam administrar, ditando as suas regras, em razão da precedência no seu uso. O português é hoje uma língua pluricontinental e “incontrolável”: e essa é que é a sua riqueza. Muitos dos vitupérios lançados por portugueses ao acordo ortográfico relacionam-se com essa incapacidade de conceber a língua para lá do espaço geográfico português.
Quando se atribui a este acordo uma cedência à norma brasileira, não só se ignora um processo histórico de várias décadas como, aliás, se nega a própria realidade dos factos (para um aprofundamento deste aspecto, remeto novamente para o artigo de D’Silvas Filho, principalmente para o seu primeiro ponto). Além disso, vislumbram-se, devidamente encapotados, sentimentos de superioridade e a asunção do direito à primazia nas questões relativas à língua portuguesa (acrescente-se, por exemplo, que em vários blogues se discute se se pode realmente chamar português à língua falada no Brasil, como se tal dúvida pudesse surgir em relação às línguas dos Estados Unidos da América ou da Argentina). Enfim, na minha opinião, não há nenhuma razão válida para que um cidadão português considere que o futuro da língua materna de tantos milhões de pessoas lhe diz respeito em primeiro lugar. E é exactamente por a língua portuguesa não ser já um bem “português” mas sim um bem comum que as estratégias da sua defesa e da sua promoção têm de ser pensadas comummente. Assim, a decisão de unificar a ortografia das duas normas vigentes não tem de ser pensada em termos de interesse nacional, mas sim de interesse da língua.
A verdade é que, se nada se fizer, as variantes irão divergindo, o português perderá a sua força como língua mundial e todos sairemos a perder. O ensino do português como língua estrangeira, por exemplo, só terá a ganhar com a entrada em vigor da ortografia unificada. Sendo evidente que, no futuro, o motor do ensino do português no mundo será o Brasil, país emergente com mais de 180 milhões de habitantes, continuaremos a ensinar duas variantes de português mas não é concebível que se ensinem duas normas ortográficas diferentes (seguiremos, pois, o caso do ensino do inglês ou do espanhol).
A ratificação do acordo ortográfico é, pois, a primeira pedra do reforço da identidade do português como língua global, a que terá de se seguir um acordo relativo ao vocabulário técnico-científico, área em que as disparidades das normas são salientes e é (ainda) possível actuar no sentido de as atenuar. Depois, haverá sempre diferenças no vocabulário do quotidiano, mas não tantas como por vezes se dá a entender. Por fim, como as dificuldades de inter-compreensão entre portugueses e brasileiros se devem principalmente à fonética, haverá que estudar medidas para estimular o contacto entre os dois povos, não de modo a esbater as diferenças de pronúncia (algo que não é possível nem, a meu ver, desejável) mas a torná-las menos estranhas entre si (esse trabalho encontra-se em estado mais avançado em Portugal).
Por estas razões, defendo pessoalmente o acordo ortográfico e vejo na sua entrada em vigor uma vitória da racionalidade sobre o conformismo e a inércia que têm caracterizado as últimas décadas e que têm contribuído, esses sim, para o desgaste e o empobrecimento da língua portuguesa.
Este último aspecto parece-me o de mais simples contestação: resistentes às alterações ortográficas sempre os houve e sempre os haverá. Tenho familiares que apostrofam a contracção da preposição de com o pronome ele (“d’ele”). Talvez ainda haja algum centenário que escreva pharmácia, embora a abolição do grupo consonântico -ph- date de 1911. São teimas que apenas atestam que somos animais de hábitos. Daqui a 100 anos, haverá talvez quem ainda escreva acção, mesmo que entretanto tenha entrado em vigor o acordo que elimina as consoantes mudas. É a vida.
Começarei por recuar a esse ano de 1911, data de oficialização da reforma ortográfica em Portugal (uma medida simbólica que sucede à implementação da República, em 1910). Essa reforma aboliu grupos consonânticos, como -ph- ou -th-, e o uso da maior parte das consoantes duplas, como -ll-. A nova grafia foi adoptada exclusivamente em Portugal; o Brasil manteria por mais alguns anos a ortografia tradicional, tão adequada aos poetas parnasianos serôdios de que os escritores modernistas viriam a escarnecer alguns anos depois. Um acordo posterior entre Portugal e o Brasil, em 1931, previa a anulação das consoantes mudas (sim, em 1931, Portugal já se tinha decidido a passar a escrever ação!), mas depois Portugal não cumpriu esse acordo em 1945, em tempos de exaltação nacionalista (confronte-se a esse respeito o artigo de D’Silvas Filho que rebate os argumentos contra o acordo ortográfico no sítio Ciberdúvidas aqui).
Em 1990, finalmente, definiu-se o novo acordo ortográfico, aquele de que agora falamos, que exigia a ratificação de todos os países de língua oficial portuguesa e que foi ratificado unicamente por Portugal, pelo Brasil e por Cabo Verde. Como os outros países não o chegaram a ratificar, o acordo ficou na gaveta; mas, na verdade, Portugal, em 1991, já ratificou o acordo que agora suscita tanta contestação (sim, em 1991, Portugal já tinha reiterado a sua decisão de passar a escrever ação!). Como geralmente acontece em Portugal, muita gente não deu por isso ou, se deu por alguma coisa, entretanto esqueceu-se (para só agora acordar aos brados contra este acordo decidido “de repente” e “sem debate público”). Em 2004, foi decidido consensualmente que bastaria a ratificação de três países para que o acordo entrasse em vigor. Ratificaram-no desde então o Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – virtualmente, o acordo já poderia, pois, avançar. Quanto a Portugal, o governo anunciou que pretendia ratificar o acordo até ao fim de 2007 mas em Dezembro o processo foi remetido para o ano de 2008 (leia-se a notícia no Diário Digital aqui)
Não me parece necessário demorar-me sobre a noção de que uma língua é um corpo vivo e em permanente evolução. Também não vou entrar em considerações sobre a evolução da sintaxe ou do léxico das línguas. Atenho-me à ortografia, que, em quase todas as línguas, tende a simplificar-se e a acompanhar a expressão oral. Há quem veja nesse facto uma cedência à preguiça, uma rejeição das raízes de uma língua ou uma corrupção do seu grau de pureza. Pessoalmente, considero-o um fenómeno normal, inelutável e sadio. Penso também que, mais do que nunca, uma ortografia unificada para todos os países de língua portuguesa se impõe como uma necessidade. O português é a única grande língua ocidental com dois sistemas ortográficos diferentes, um português e outro brasileiro. Não há razão para que coexistam duas normas ortográficas quando o que está em causa é, afinal, a manutenção ou não de umas quantas consoantes mudas e de uns quantos acentos.
Exponho de forma abreviada as alterações que o acordo ortográfico introduz:
- eliminação de alguns acentos, medida que altera ambas as variantes (vêem → veem) ou a variante brasileira (vôo, idéia → voo, ideia);
- eliminação do trema (freqüência → frequência), medida que altera a variante brasileira;
- eliminação de muitas consoantes mudas em grupos consonânticos (acção, óptimo, eléctrico → ação, ótimo, elétrico), medida que altera a norma portuguesa;
- simplificação e uniformização das regras do uso do hífen e das maiúsculas;
- introdução das letras k, w, y no alfabeto português (estas letras estão presentes em muitas palavras de países africanos que entretanto foram incorporadas ao léxico português).
Para informação pormenorizada, consulte-se a secção “Novo Acordo Ortográfico” da página do sítio pessoal de D’Silvas Filho que analisa a questão aqui.
Os detractores do acordo argumentam, com razão, que não são as diferenças ortográficas que causam incompreensão. Há algumas semanas, na sua crónica do semanário Expresso, Miguel Sousa Tavares (jornalista e autor de romances que se tornaram best-sellers em Portugal), que aponta como “objectivo único” do acordo “pôr-nos a escrever como os brasileiros”, orgulhava-se de o seu romance Equador ter vendido cerca de 50.000 exemplares no Brasil, apesar de ele não ter cedido às insistências da editora brasileira no sentido de adaptar a grafia à norma brasileira. Ora, como português, eu não tenho nenhuma dificuldade em perceber a frase “a direção da empresa teve uma idéia ótima”; e não me espanta que os leitores brasileiros possuam uma competência análoga, compreendendo perfeitamente a frase “a direcção da empresa teve uma ideia óptima” (embora para alguns portugueses esse facto possa parecer surpreendente…).
É evidente que não é a ortografia o principal factor da divergência entre as normas portuguesa e brasileira. Também me parece evidente que acordo algum terá jamais o intuito (e muito menos o poder) de anular essa divergência, decretando, por exemplo, em Portugal, a substituição da perífrase “estar a + infinitivo” pela forma correspondente, de uso no Brasil, “estar + gerúndio”; ou exigindo aos brasileiros que antecedam os possessivos de artigo definido, como acontece na norma portuguesa. É que não são os acordos que têm o poder de alterar a língua, são os falantes (de resto, o acordo ortográfico só interfere naquilo em que pode interferir: a ortografia).
Quando Sousa Tavares escreve, no fim do seu artigo, “orgulho-me de ter feito bem mais pela nossa língua no Brasil [com as vendas do romance Equador] do que todos esses que se dispõem a vendê-la como coisa velha e descartável” há que reflectir em nome de que “nossa língua” se exprime. A língua portuguesa não é hoje um bem que os portugueses possam administrar, ditando as suas regras, em razão da precedência no seu uso. O português é hoje uma língua pluricontinental e “incontrolável”: e essa é que é a sua riqueza. Muitos dos vitupérios lançados por portugueses ao acordo ortográfico relacionam-se com essa incapacidade de conceber a língua para lá do espaço geográfico português.
Quando se atribui a este acordo uma cedência à norma brasileira, não só se ignora um processo histórico de várias décadas como, aliás, se nega a própria realidade dos factos (para um aprofundamento deste aspecto, remeto novamente para o artigo de D’Silvas Filho, principalmente para o seu primeiro ponto). Além disso, vislumbram-se, devidamente encapotados, sentimentos de superioridade e a asunção do direito à primazia nas questões relativas à língua portuguesa (acrescente-se, por exemplo, que em vários blogues se discute se se pode realmente chamar português à língua falada no Brasil, como se tal dúvida pudesse surgir em relação às línguas dos Estados Unidos da América ou da Argentina). Enfim, na minha opinião, não há nenhuma razão válida para que um cidadão português considere que o futuro da língua materna de tantos milhões de pessoas lhe diz respeito em primeiro lugar. E é exactamente por a língua portuguesa não ser já um bem “português” mas sim um bem comum que as estratégias da sua defesa e da sua promoção têm de ser pensadas comummente. Assim, a decisão de unificar a ortografia das duas normas vigentes não tem de ser pensada em termos de interesse nacional, mas sim de interesse da língua.
A verdade é que, se nada se fizer, as variantes irão divergindo, o português perderá a sua força como língua mundial e todos sairemos a perder. O ensino do português como língua estrangeira, por exemplo, só terá a ganhar com a entrada em vigor da ortografia unificada. Sendo evidente que, no futuro, o motor do ensino do português no mundo será o Brasil, país emergente com mais de 180 milhões de habitantes, continuaremos a ensinar duas variantes de português mas não é concebível que se ensinem duas normas ortográficas diferentes (seguiremos, pois, o caso do ensino do inglês ou do espanhol).
A ratificação do acordo ortográfico é, pois, a primeira pedra do reforço da identidade do português como língua global, a que terá de se seguir um acordo relativo ao vocabulário técnico-científico, área em que as disparidades das normas são salientes e é (ainda) possível actuar no sentido de as atenuar. Depois, haverá sempre diferenças no vocabulário do quotidiano, mas não tantas como por vezes se dá a entender. Por fim, como as dificuldades de inter-compreensão entre portugueses e brasileiros se devem principalmente à fonética, haverá que estudar medidas para estimular o contacto entre os dois povos, não de modo a esbater as diferenças de pronúncia (algo que não é possível nem, a meu ver, desejável) mas a torná-las menos estranhas entre si (esse trabalho encontra-se em estado mais avançado em Portugal).
Por estas razões, defendo pessoalmente o acordo ortográfico e vejo na sua entrada em vigor uma vitória da racionalidade sobre o conformismo e a inércia que têm caracterizado as últimas décadas e que têm contribuído, esses sim, para o desgaste e o empobrecimento da língua portuguesa.
07/01/08
Expressões ilustradas
Voltar à vaca-fria
Voltar a falar no mesmo assunto, insistir na discussão de um assunto (geralmente depois de divagações que afastaram os falantes do tema central de uma discussão).
“Essas anedotas que estiveste a contar são mesmo giras; mas agora, para voltar à vaca-fria: quando é que pensas que me podes devolver o dinheiro que te emprestei?”
Consulte aqui a resposta do sítio Ciberdúvidas para a possível origem da expressão.
Voltar a falar no mesmo assunto, insistir na discussão de um assunto (geralmente depois de divagações que afastaram os falantes do tema central de uma discussão).
“Essas anedotas que estiveste a contar são mesmo giras; mas agora, para voltar à vaca-fria: quando é que pensas que me podes devolver o dinheiro que te emprestei?”
Consulte aqui a resposta do sítio Ciberdúvidas para a possível origem da expressão.
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