Recentemente, a perspectiva da entrada em vigor do Acordo Ortográfico que visa unificar as normas de Portugal e do Brasil tem provocado alguma celeuma em Portugal. Como português, darei a minha opinião sobre o assunto, tendo em conta, naturalmente, as críticas que de Portugal se têm feito sentir. As vozes mais discordantes insurgem-se contra um acordo que, acusam, empobrece a língua e desrespeita a sua matriz. Outros vêem no acordo uma conjura com o mero objectivo de facilitar a penetração das editoras brasileiras nos países africanos de língua oficial portuguesa, cujo mercado tem favorecido, até ao presente, as editoras portuguesas. Há quem considere que os elevados custos que o acordo acarretará (desactualização de dicionários, de gramáticas e de prontuários, revisão de edições, etc.) não o justificam. Por fim, há quem evoque razões afectivas para boicotar o novo acordo a que, asseguram, nunca se submeterão: “Toda a vida escrevi acção com dois c… Nunca ninguém me poderá agora obrigar a escrever ação em vez de acção…”.
Este último aspecto parece-me o de mais simples contestação: resistentes às alterações ortográficas sempre os houve e sempre os haverá. Tenho familiares que apostrofam a contracção da preposição de com o pronome ele (“d’ele”). Talvez ainda haja algum centenário que escreva pharmácia, embora a abolição do grupo consonântico -ph- date de 1911. São teimas que apenas atestam que somos animais de hábitos. Daqui a 100 anos, haverá talvez quem ainda escreva acção, mesmo que entretanto tenha entrado em vigor o acordo que elimina as consoantes mudas. É a vida.
Começarei por recuar a esse ano de 1911, data de oficialização da reforma ortográfica em Portugal (uma medida simbólica que sucede à implementação da República, em 1910). Essa reforma aboliu grupos consonânticos, como -ph- ou -th-, e o uso da maior parte das consoantes duplas, como -ll-. A nova grafia foi adoptada exclusivamente em Portugal; o Brasil manteria por mais alguns anos a ortografia tradicional, tão adequada aos poetas parnasianos serôdios de que os escritores modernistas viriam a escarnecer alguns anos depois. Um acordo posterior entre Portugal e o Brasil, em 1931, previa a anulação das consoantes mudas (sim, em 1931, Portugal já se tinha decidido a passar a escrever ação!), mas depois Portugal não cumpriu esse acordo em 1945, em tempos de exaltação nacionalista (confronte-se a esse respeito o artigo de D’Silvas Filho que rebate os argumentos contra o acordo ortográfico no sítio Ciberdúvidas aqui).
Em 1990, finalmente, definiu-se o novo acordo ortográfico, aquele de que agora falamos, que exigia a ratificação de todos os países de língua oficial portuguesa e que foi ratificado unicamente por Portugal, pelo Brasil e por Cabo Verde. Como os outros países não o chegaram a ratificar, o acordo ficou na gaveta; mas, na verdade, Portugal, em 1991, já ratificou o acordo que agora suscita tanta contestação (sim, em 1991, Portugal já tinha reiterado a sua decisão de passar a escrever ação!). Como geralmente acontece em Portugal, muita gente não deu por isso ou, se deu por alguma coisa, entretanto esqueceu-se (para só agora acordar aos brados contra este acordo decidido “de repente” e “sem debate público”). Em 2004, foi decidido consensualmente que bastaria a ratificação de três países para que o acordo entrasse em vigor. Ratificaram-no desde então o Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – virtualmente, o acordo já poderia, pois, avançar. Quanto a Portugal, o governo anunciou que pretendia ratificar o acordo até ao fim de 2007 mas em Dezembro o processo foi remetido para o ano de 2008 (leia-se a notícia no Diário Digital aqui)
Não me parece necessário demorar-me sobre a noção de que uma língua é um corpo vivo e em permanente evolução. Também não vou entrar em considerações sobre a evolução da sintaxe ou do léxico das línguas. Atenho-me à ortografia, que, em quase todas as línguas, tende a simplificar-se e a acompanhar a expressão oral. Há quem veja nesse facto uma cedência à preguiça, uma rejeição das raízes de uma língua ou uma corrupção do seu grau de pureza. Pessoalmente, considero-o um fenómeno normal, inelutável e sadio. Penso também que, mais do que nunca, uma ortografia unificada para todos os países de língua portuguesa se impõe como uma necessidade. O português é a única grande língua ocidental com dois sistemas ortográficos diferentes, um português e outro brasileiro. Não há razão para que coexistam duas normas ortográficas quando o que está em causa é, afinal, a manutenção ou não de umas quantas consoantes mudas e de uns quantos acentos.
Exponho de forma abreviada as alterações que o acordo ortográfico introduz:
- eliminação de alguns acentos, medida que altera ambas as variantes (vêem → veem) ou a variante brasileira (vôo, idéia → voo, ideia);
- eliminação do trema (freqüência → frequência), medida que altera a variante brasileira;
- eliminação de muitas consoantes mudas em grupos consonânticos (acção, óptimo, eléctrico → ação, ótimo, elétrico), medida que altera a norma portuguesa;
- simplificação e uniformização das regras do uso do hífen e das maiúsculas;
- introdução das letras k, w, y no alfabeto português (estas letras estão presentes em muitas palavras de países africanos que entretanto foram incorporadas ao léxico português).
Para informação pormenorizada, consulte-se a secção “Novo Acordo Ortográfico” da página do sítio pessoal de D’Silvas Filho que analisa a questão aqui.
Os detractores do acordo argumentam, com razão, que não são as diferenças ortográficas que causam incompreensão. Há algumas semanas, na sua crónica do semanário Expresso, Miguel Sousa Tavares (jornalista e autor de romances que se tornaram best-sellers em Portugal), que aponta como “objectivo único” do acordo “pôr-nos a escrever como os brasileiros”, orgulhava-se de o seu romance Equador ter vendido cerca de 50.000 exemplares no Brasil, apesar de ele não ter cedido às insistências da editora brasileira no sentido de adaptar a grafia à norma brasileira. Ora, como português, eu não tenho nenhuma dificuldade em perceber a frase “a direção da empresa teve uma idéia ótima”; e não me espanta que os leitores brasileiros possuam uma competência análoga, compreendendo perfeitamente a frase “a direcção da empresa teve uma ideia óptima” (embora para alguns portugueses esse facto possa parecer surpreendente…).
É evidente que não é a ortografia o principal factor da divergência entre as normas portuguesa e brasileira. Também me parece evidente que acordo algum terá jamais o intuito (e muito menos o poder) de anular essa divergência, decretando, por exemplo, em Portugal, a substituição da perífrase “estar a + infinitivo” pela forma correspondente, de uso no Brasil, “estar + gerúndio”; ou exigindo aos brasileiros que antecedam os possessivos de artigo definido, como acontece na norma portuguesa. É que não são os acordos que têm o poder de alterar a língua, são os falantes (de resto, o acordo ortográfico só interfere naquilo em que pode interferir: a ortografia).
Quando Sousa Tavares escreve, no fim do seu artigo, “orgulho-me de ter feito bem mais pela nossa língua no Brasil [com as vendas do romance Equador] do que todos esses que se dispõem a vendê-la como coisa velha e descartável” há que reflectir em nome de que “nossa língua” se exprime. A língua portuguesa não é hoje um bem que os portugueses possam administrar, ditando as suas regras, em razão da precedência no seu uso. O português é hoje uma língua pluricontinental e “incontrolável”: e essa é que é a sua riqueza. Muitos dos vitupérios lançados por portugueses ao acordo ortográfico relacionam-se com essa incapacidade de conceber a língua para lá do espaço geográfico português.
Quando se atribui a este acordo uma cedência à norma brasileira, não só se ignora um processo histórico de várias décadas como, aliás, se nega a própria realidade dos factos (para um aprofundamento deste aspecto, remeto novamente para o artigo de D’Silvas Filho, principalmente para o seu primeiro ponto). Além disso, vislumbram-se, devidamente encapotados, sentimentos de superioridade e a asunção do direito à primazia nas questões relativas à língua portuguesa (acrescente-se, por exemplo, que em vários blogues se discute se se pode realmente chamar português à língua falada no Brasil, como se tal dúvida pudesse surgir em relação às línguas dos Estados Unidos da América ou da Argentina). Enfim, na minha opinião, não há nenhuma razão válida para que um cidadão português considere que o futuro da língua materna de tantos milhões de pessoas lhe diz respeito em primeiro lugar. E é exactamente por a língua portuguesa não ser já um bem “português” mas sim um bem comum que as estratégias da sua defesa e da sua promoção têm de ser pensadas comummente. Assim, a decisão de unificar a ortografia das duas normas vigentes não tem de ser pensada em termos de interesse nacional, mas sim de interesse da língua.
A verdade é que, se nada se fizer, as variantes irão divergindo, o português perderá a sua força como língua mundial e todos sairemos a perder. O ensino do português como língua estrangeira, por exemplo, só terá a ganhar com a entrada em vigor da ortografia unificada. Sendo evidente que, no futuro, o motor do ensino do português no mundo será o Brasil, país emergente com mais de 180 milhões de habitantes, continuaremos a ensinar duas variantes de português mas não é concebível que se ensinem duas normas ortográficas diferentes (seguiremos, pois, o caso do ensino do inglês ou do espanhol).
A ratificação do acordo ortográfico é, pois, a primeira pedra do reforço da identidade do português como língua global, a que terá de se seguir um acordo relativo ao vocabulário técnico-científico, área em que as disparidades das normas são salientes e é (ainda) possível actuar no sentido de as atenuar. Depois, haverá sempre diferenças no vocabulário do quotidiano, mas não tantas como por vezes se dá a entender. Por fim, como as dificuldades de inter-compreensão entre portugueses e brasileiros se devem principalmente à fonética, haverá que estudar medidas para estimular o contacto entre os dois povos, não de modo a esbater as diferenças de pronúncia (algo que não é possível nem, a meu ver, desejável) mas a torná-las menos estranhas entre si (esse trabalho encontra-se em estado mais avançado em Portugal).
Por estas razões, defendo pessoalmente o acordo ortográfico e vejo na sua entrada em vigor uma vitória da racionalidade sobre o conformismo e a inércia que têm caracterizado as últimas décadas e que têm contribuído, esses sim, para o desgaste e o empobrecimento da língua portuguesa.
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2 comentários:
Estou 100 por cento de acordo. Há 20 anos que defendo este acordo ortográfico.
Não está em questão o que nos convém mais porque estamos habituados a escrever "assim". Convém que uma língua reflicta as evoluções que sofreu, caso contrário a sua grafia torna-se excessivamente complexa. Se a evolução afasta os vocábulos cada vez mais do seu étimo, paciência. Eu também já não sou muito parecida com os meus trisavós. É um mecanismo natural. A língua sofre evoluções e ainda bem que assim é, ou estaria morta. O português europeu tem sofrido inúmeras influências da variante brasileira. Conto pelos dedos os que dizem confusão e conselho em vez de bagunça e dica. No entanto, ninguém reclama das aquisições ao nível lexical. Não vejo qual é o problema com a ortografia. Cá por mim, venha o acordo.
Gostei muito de ler o teu post sobre o acordo ortográfico. É uma opinião coerente e clarividente, que exprime uma escolha e expõe as suas razões.
Assino por baixo quando dizes que a "língua é um corpo vivo e em permanente evolução". Talvez seja por isso que a coisa que mais me chateia neste acordo seja o facto de estarmos a pretender uniformizar por via "normativa" algo que (na minha opinião) nunca poderá ser uniformizado, isto é, as formas distintas de falar e escrever uma mesma língua – que não é "nossa" nem "deles", mas de todos quantos desejem utilizá-la como meio de comunicação.
Concordo com o que dizes a respeito das mais-valias do acordo, consigo encontrá-las e reconhecê-las. Mas julgo que poderíamos harmonizar sem uniformizar, porque uniformizando perdemos a riqueza linguística, falada e escrita, que cresceu ao longo dos anos nas mais diversas latitudes.
O relativismo e o positivismo são dois extremos nem sempre fáceis de evitar. Conseguiremos ser flexíveis e abarcar as mais diversas particularidades da comunicação em português sem com isso abrir a caixa de Pandora do português adulterado? Conseguiremos (ou deveremos), pelo contrário, fixar uma regra do português correcto mesmo quando essa regra exclui outras formas que continuam bem vivas no modo como as pessoas lêem, escrevem, falam e pensam o português?
Confesso que conheço muito pouco do acordo. Aliás, pelo meu comentário consegues ver que não tenho ainda opinião bem formada. Mas, ao ler o teu post, tive instintivamente esta reflexão. Se a Fátima Campos Ferreira me perguntasse agorinha mesmo o que eu penso do acordo, talvez lhe respondesse desta forma: "provavelmente um mal necessário".
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