19/10/07

Um poema por semana

Caranguejola, de Mário de Sá-Carneiro

- Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira -
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais - não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com este enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar...

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edrédon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! Levem-me prà enfermaria! -
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível - por causa da legenda...
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda -
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Paris - Novembro 1915

Mário de Sá-Carneiro, Poemas Completos, edição de Fernando Cabral Martins, Assírio & Alvim, 2001


Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) foi um dos fundadores da importante revista modernista Orpheu (1915), pedra basilar do importante movimento modernista português. Tendo estudado em Paris, aí escreveu uma boa parte das suas obras, que se repartem em novelas (A Confissão de Lúcio, Céu em Fogo) e livros de poesia (Dispersão, Indícios de Oiro). Amigo e confidente de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro foi um poeta amargurado e profundamente dividido. Acabou por se suicidar, num quarto de hotel, em Paris.

1 comentário:

Isabela Figueiredo disse...

A literatura portuguesa é riquíssima em poemas cuja leitura justifica uma vida. Quero dizer, justifica ter tido o direito e a obrigação a viver uma vida. Este é um desses poemas pelo qual valeu a pena ter nascido. Para o escrever, claro. Mas, na minha perspectiva, para poder tê-lo lido.