28/10/07

Um poema por semana

Viver sempre também cansa (1931), de José Gomes Ferreira

Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde…
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida…

E obrigam-me a viver até a Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
«Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela.»

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo…


José Gomes Ferreira (1900 – 1985) foi um poeta e escritor português. Ligado ao movimento neo-realista, o seu empenho cívico valeu-lhe o epíteto de "poeta militante", título de que se serviu mais tarde para o conjunto da sua obra poética. Alguns dos temas recorrentes da sua poesia são a revolta face às injustiças, o remorso e o desconsolo perante a previsibilidade da vida. Para além da poesia, publicou em 1973 Aventuras de João Sem Medo, romance dirigido ao público infantil (mas não só) sobre um rapaz corajoso que se decide a abandonar um país cinzento, enfrentando o medo e conhecendo outros mundos. O livro mereceu do crítico Alexandre Pinheiro Torres as seguintes palavras: "Livro sem qualquer paralelo na literatura europeia de hoje, ganha no confronto em relação a outras célebres alegorias políticas como "Animal Farm" de Orwell, ou as de Karel Capek. É que há (...) uma audácia à Swift ("Gulliver's Travel") de transfiguração e simbologia política que transcendem de bastante longe o burocratismo imaginativo de Orwell ou de Capeck, sem verdadeiras raízes nas tradições populares ou folclóricas que conferem a estas 'Aventuras' o seu carácter único" (citação encontrada aqui).

Consulte aqui a biografia do Centro Virtual Camões.

1 comentário:

Isabela Figueiredo disse...

Belo dossier temático sobre a vida.