16/12/07

Um poema por semana

O Funcionário Cansado, de António Ramos Rosa

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mão estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soletradas na prisão da minha vida
isso todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

in Viagem através duma nebulosa (1960)

António Ramos Rosa (1924-) conta com uma obra extensa, sendo as suas primeiras obras (do fim dos anos 50) influenciadas pelo neo-realismo e depois pelo surrealismo. Foi um dos fundadores, em 1951, da importante revista de poesia Árvore. Para além de poeta, notabilizou-se nas actividades de crítico e de tradutor. Uma gorada experiência como empregado de escritório terá estado provavelmente na origem do poema transcrito.

Leia aqui a biografia de António Ramos Rosa da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas e consulte aqui uma página dedicada ao poeta.

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