22/12/07

Um poema por semana


Imagem: Lisbonne, Gueorgui Pinkhassov (Magnum Photos)


O Sentimento dum Ocidental, de Cesário Verde


I. AVE-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

in O Livro de Cesário Verde, 1887 (primeira publicação do poema em 1880)

VOCABULÁRIO
soturnidade – melancolia, taciturnidade, tristeza.
bulício – ruído contínuo e confuso de vozes ou de coisas em movimento.
turba – concentração de pessoas, multidão.
toldar-se – perder a transparência, a limpidez.
viga – elemento estrutural de construção, colocado horizontalmente; trave.
calafates – pessoa cujo ofício é calafetar embarcações, a fim de as tornar estanques.
aos magotes – em grande número (pessoas).
jaquetão – casaco largo, geralmente em tecido grosso.
boqueirões – rua ou viela que dá para um rio ou canal.
baixel – barco, embarcação.
singrar – navegar à vela, andar para diante, avançar.
vogar – deslizar, navegar.
escaler – pequeno barco sem coberta, a remos, para serviço de um navio.
arengar – discutir, rezingar, altercar.
trôpego – que se move ou anda com dificuldade, de modo vacilante.
vazar-se – ficar vazio.
viscoso – que é espesso e pegajoso.
cardume – conjunto de peixes.
galhofeiro – alegre, folgazão, brincalhão.
assomar – começar a surgir, a aparecer.
canastra – cesta larga e baixa, em madeira, usada para transportar peixe.
fragata – barco robusto usado no rio Tejo para tráfego comercial.
apinhar-se – reunir-se em grande número num espaço.

Cesário Verde (1855-1886) foi um importante poeta português, valorizado principalmente no século XX. Oriundo de uma família de comerciantes, interessou-se desde cedo pela literatura, mas foi criticado ou ignorado em vida e só após a sua morte (por tuberculose) um amigo compilou os seus poemas num volume a que chamou O Livro de Cesário Verde. Pelo flagrante contraste com os seus antecessores românticos (salienta-se, por exemplo, o seu interesse por matérias prosaicas ou a empatia para com as classes trabalhadoras) é considerado um poeta realista e muito inovador. O poema “O Sentimento de um Ocidental” (composto por IV partes, tendo sido aqui transcrita apenas a primeira) é a sua obra-prima, e nele se encontra uma impressionante representação do espaço urbano, dada pela apresentação de cenas múltiplas e sucessivas, num processo impressionista e que apela fortemente aos sentidos.

Leia aqui a biografia de Cesário Verde da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas

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