Texto de: Deckard
Em primeiro lugar, gosto de (jogar) futebol. Mais do que um prazer, é uma relação de amor e de ódio. “Amor”, porque o desporto-rei é uma paixão antiga (desde o famoso Benfica-Marselha de 1990 e a mão do Vata), e também porque adoro jogar com meus amigos. O futebol de rua tem de facto a vantagem de ser mais rápido, exuberante e de raramente acabar em pancadaria. Por outro lado, “desilusão” porque o futebol liberalizou-se em detrimento dos “pequenos” e das selecções nacionais. O mau perder, a falta de fair play, o excesso de mediatização (em Portugal nomeadamente) e o clima de guerra inerentes a este desporto causam-me repulsa.
Segundo prazer: o cinema. Gosto de tudo, sem distinção de género ou de nacionalidade. Identifico-me com os filmes de Sergio Leone, Jacques Audiard, Eric Rochant, Jean-Pierre Melville, Arnold Schwarzenegger (assumo totalmente), François Truffaut, Paul Verhoeven, Stanley Kubrick e muito mais. Todavia, a minha preferência vai para uma forma de cinema popular e exigente, um cinema nem demagógico, nem elitista. O americano Michael Mann, o meu cineasta preferido, corresponde a esta ideia. Tenho igualmente um certo fascínio pelo cinema americano dos anos setenta. Os últimos filmes que me marcaram foram Control, sobre a vida do cantor Ian Curtis, efémero lider do grupo Joy Division, e 7h58, excelente filme policial e ao mesmo tempo uma tragédia familiar.
A lista dos meus filmes é extensa, mas o número um é sem duvida Blade Runner. Obceca-me e creio que não passa um dia sem que eu não pense neste filme. Por isso, considero-o como um prazer à parte. Gosto de tudo desse filme: a história, a música, os efeitos especiais, a actuação do elenco, o ambiente melancólico... Não posso explicitar mais porque a minha relação com esta obra é demasiada íntima.
Outro dos meus prazeres é a música, o rock, a pop electrónica, as músicas do mundo e as músicas de filmes. Sem ser especializado num domínio ou num artista particular, oiço um pouco de tudo, desde Ennio Morricone a Sara Tavares passando por Peter Gabriel, Rodrigo Leão Yann Tiersen e Serge Gainsbourg. Actualmente, não paro de trautear as canções dos grupos Raveoettes e Arcade Fire.
Gosto também de ler, embora faça parte das pessoas que viram mais filmes de que leram livros. Entre os meus autores favoritos, constam Bret Easton Ellis, Franck Miller e Philip K. Dick. Poderia ter citado tambem António Lobo Antunes de quem aprecio o estilo lírico e exigente mas só li quatro ou cinco livros dele. Li ultimamente les Bienveillantes que me “abalou” (no bom sentido). Independentemente da sua densidade e do estilo minucioso e sem concessão do Jonathan Littell, a obra reúne temas que me cativam, como a Segunda Guerra Mundial ou a ambiguidade moral.
30/11/07
Pequenos Prazeres
Dica para jardineiros amadores
E para quem ama as plantas e as árvores, há um blogue que dá uma boa ajuda a "jardineiros amadores, sem presunção de saber, mas com gosto em aprender": Bolotas Guardadas. Informações precisas e conselhos úteis para cuidar das plantas, com imagens bonitas.
Vale a pena dar um passeio por aquele jardim.
Imagem retirada do blogue Bolotas Guardadas
Um poema por semana
O nome do cão, por Manuel António Pina
O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.
Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava
ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.
E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
Então sonhava
o sonho sólido em que existia.
E não compreendia.
Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
E a minha mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: «É a vida…»
O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.
Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava
ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.
E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
Então sonhava
o sonho sólido em que existia.
E não compreendia.
Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
E a minha mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: «É a vida…»
17/2/90, in Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança (1999)
Manuel António Pina (1943) é um poeta, jornalista e cronista português. A sua obra inclui também vários livros infanto-juvenis (é um dos mais destacados autores portugueses a escreverem para esse público), peças de teatro e uma novela, Os Papéis de K. É actualmente colunista da revista Visão, fazendo frequentemente uso de ironia nas suas crónicas. A sua poesia é marcadamente auto-reflexiva, sendo a memória um dos seus temas privilegiados.
Encontre aqui uma biografia de Manuel António Pina (sítio da Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas).
Imagem: uma buganvília
O fait-divers do dia - CTT lançam primeiro selo de cortiça do mundo
CTT lançam primeiro selo de cortiça do mundo
Público, 28.11.2007 (notícia da agência Lusa) – veja o artigo na página original aqui.
Os CTT lançaram hoje o primeiro selo de cortiça do mundo na Assembleia da República, numa edição única de 230 mil exemplares que está "praticamente esgotada". O selo foi desenhado pelo designer João Machado.
Público, 28.11.2007 (notícia da agência Lusa) – veja o artigo na página original aqui.
Os CTT lançaram hoje o primeiro selo de cortiça do mundo na Assembleia da República, numa edição única de 230 mil exemplares que está "praticamente esgotada". O selo foi desenhado pelo designer João Machado.
"É um selo muito bonito, que homenageia em simultâneo quer a cortiça quer o sobreiro e o papel que o montado tem representado para fins ambientais em Portugal", destacou o presidente dos CTT, Luís Nazaré, no final da cerimónia de lançamento.
O selo, com a imagem de um sobreiro, tem o valor facial de um euro, e o presidente dos CTT assegura que a edição "está praticamente esgotada", estando afastada a possibilidade de uma segunda edição.
"Nunca fazemos segundas edições, é por isso que a filatelia portuguesa é tão considerada", explicou.
O presidente dos CTT sublinhou que, sendo uma estreia a nível mundial, não foi fácil produzir este selo de cortiça, em que cada exemplar é uma peça única.
"Tivemos de encontrar um material especialmente fino, que aguentasse a impressão, não se degradasse rapidamente e que pudesse ter no verso uma fita auto-adesiva", explicou, recusando contudo revelar o custo final da produção deste selo.
Na cerimónia de lançamento estiveram presentes o presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, o ministro da Agricultura, Jaime Silva, e o ministro dos Assuntos Parlamentares, Augusto Santos Silva.
Dicionário:
CTT: sigla de Correios e Telecomunicações de Portugal.
montado: terreno plantado essencialmente de sobreiros ou azinheiras e onde se costuma pastar o gado suíno (os porcos alimentam-se em grande parte da bolota, o fruto do sobreiro).
filatelia: gosto pelo coleccionismo de selos.
Com o auxílio do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa.
Dicionário:
CTT: sigla de Correios e Telecomunicações de Portugal.
montado: terreno plantado essencialmente de sobreiros ou azinheiras e onde se costuma pastar o gado suíno (os porcos alimentam-se em grande parte da bolota, o fruto do sobreiro).
filatelia: gosto pelo coleccionismo de selos.
Com o auxílio do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa.
A cortiça é a casca rugosa que reveste o tronco e os ramos do sobreiro (árvore da família do carvalho, que faz parte da flora da Europa do Sul e da África do Norte e que em Portugal predomina no sul, sendo característico do Alentejo). A extracção da cortiça não prejudica os sobreiros porque a casca renasce. A cortiça tem muitas aplicações na indústria (por exemplo, para as rolhas das garrafas) e Portugal é o principal produtor do mundo. Como se pode ver neste outro artigo do Diário de Notícias, o valor das exportações de cortiça representa 0,7% do produto interno bruto (PIB) português.
Imagem: aspecto de um sobreiro após a extracção da cortiça (imagem retirada daqui).
28/11/07
Expressões ilustradas - matar dois coelhos de uma cajadada só
Um cajado é uma vara de pastor, usada para guiar o rebanho e que pode eventualmente ser utilizada como arma (nesse caso, a um golpe de cajado chama-se “cajadada”).
Utiliza-se esta expressão quando se resolvem duas questões ou dois negócios de uma só vez.
“A minha avó anda sempre a queixar-se de que eu nunca a vou visitar a Portugal. No próximo fim-de-semana é o aniversário dela e acho que vou dar lá um pulo. Como preciso de comprar um bom dicionário de português-inglês para o meu novo emprego, mato dois coelhos de uma cajadada só”.
Utiliza-se esta expressão quando se resolvem duas questões ou dois negócios de uma só vez.
“A minha avó anda sempre a queixar-se de que eu nunca a vou visitar a Portugal. No próximo fim-de-semana é o aniversário dela e acho que vou dar lá um pulo. Como preciso de comprar um bom dicionário de português-inglês para o meu novo emprego, mato dois coelhos de uma cajadada só”.
A notícia do dia - Novo aeroporto de Lisboa
Uma notícia do jornal Público sobre os estudos para a localização do aeroporto que virá a substituir (ou, neste cenário, simplesmente a complementar) o aeroporto da Portela, o actual aeroporto de Lisboa, tema polémico em discussão em Portugal há alguns meses.
Portela+1 pode trazer poupanças de dois mil milhões de euros ao erário público
Artigo de Luísa Pinto para o jornal Público de 28/11/2007 (veja o artigo na página original aqui)
Um estudo encomendado pela ACP à Universidade Católica incide na análise económica e defende manutenção da Portela, apoiado por uma base low cost na margem esquerda.
Artigo de Luísa Pinto para o jornal Público de 28/11/2007 (veja o artigo na página original aqui)
Um estudo encomendado pela ACP à Universidade Católica incide na análise económica e defende manutenção da Portela, apoiado por uma base low cost na margem esquerda.
A Associação Comercial do Porto (ACP) já entregou ao Governo o seu contributo para a discussão em curso sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa, aquele que deve ser o último estudo a ser conhecido antes de o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), encarregado pelo executivo de analisar as alternativas, se pronunciar.
O estudo da ACP não se debruça muito sobre a localização do aeroporto, nem aprofunda a questão das acessibilidades ou dos impactos ambientais - apesar de não descurar estes temas. A preocupação vai quase toda para uma quantificação dos custos e dos benefícios trazidos por cada uma das soluções que já foram apresentadas - a Ota defendida pelo Governo, e Alcochete defendida no estudo pago pela Confederação da Indústria Portuguesa - e ao qual acrescentam mais uma: a manutenção do aeroporto da Portela como aeroporto full service, complementado por segundo aeroporto na margem esquerda do Tejo, para receber o tráfego das companhias de aviação de baixo custo (as low cost).
A opção por esta "terceira via" que a ACP decidiu estudar revela que podem ser poupados cerca de dois mil milhões de euros, caso se resolva transformar a actual base militar do Montijo num terminal para receber companhias low cost, e 1,3 mil milhões de euros caso se opte pela solução Alcochete. Trata-se, pois, de volumes de investimento muito diferenciados, mas a equipa que realizou o estudo sublinha ter consciência de que "um modelo de exploração assente em dois aeroportos só terá vantagens se se conseguir economizar no capital investido e manter os custos de exploração unitários constantes por comparação ao cenário de uma única estrutura". Ou seja, não se investe muito mais, e mantêm-se as margens operacionais na exploração de um novo modelo de negócio, a opção pela separação de aeroportos full service (aptos a receber passageiros em trânsito e hubs das companhias aéreas ditas tradicionais) e aeroportos low cost. A Portela continuaria a ser um aeroporto full service e a albergar o hub da TAP, e na margem esquerda do Tejo surgiria desde já um terminal low cost, para onde seriam transferidos os actuais três milhões de passageiros, aliviando a Portela, e prolongando-lhe o seu "prazo de vida".
No estudo usaram-se a Portela e o Aeroporto de Faro como exemplos de aeroportos full service e low cost para perceber que as margens operacionais atingidas em cada um dos segmentos não são muito distintas: 3,5 euros por pessoa num aeroporto full service, e 2,25 euros por pessoa num aeroporto low cost. Estas margens de exploração revelam também diferenças face a outros aeroportos internacionais, porque são, referem os autores do estudo, "anormalmente baixas", o que agrava "os riscos de se firmarem compromissos a longo prazo". "Os custos mais elevados e as receitas mais baixas constituem um factor de destruição de valor, caso não exista flexibilidade suficiente para ajustar estrategicamente o modelo de negócio aos condicionalismos da evolução de mercado", lê-se no relatório do estudo. Por isso, defende que a construção do aeroporto se faça de uma forma modular, para que possa ajustar-se à evolução do mercado e adequar o ritmo dos investimentos à procura que se venha a verificar.
A alternativa "Portela+1" permite diferir o investimento na construção de um novo aeroporto, aproveitando ao máximo o investimento de 380 milhões de euros que está a ser realizado na Portela, e defende a possibilidade de ter disponível, já a partir de 2010, um aeroporto para prestar serviço exclusivo às companhias low cost.
No caso de a Portela ter de ser definitivamente abandonada - já depois dos investimentos devidamente rentabilizados -, defendem a possibilidade de transferir todo o tráfego para o aeroporto inicialmente secundário. No estudo da ACP demonstra-se que tanto Alcochete como Montijo têm capacidades de servir estes objectivos, sendo que a localização Alcochete poderá ser mais demorada, embora apenas marginalmente.
Quem fez o estudo
O estudo encomendado pela Associação Comercial do Porto (ACP) à Universidade Católica foi realizado pelo Centro de Estudos e Gestão de Economia Aplicada (CEGEA) da Faculdade de Economia e Gestão e integrou uma equipa de investigação multidisciplinar coordenada por Álvaro Nascimento. As questões de engenharia foram estudadas pela Trenmo, uma empresa de consultoria em transportes que resultou de um spin off da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, fundada por Álvaro Costa. Este especialista em transportes, envolvido nos estudos para a terceira travessia do Tejo, participou também como representante da ACP no Conselho de Orientação Estratégico presidido por Miguel Cadilhe.
Dicionário:
erário público: conjunto dos recursos económicos e financeiros do Estado.
incidir (em): recair sobre.
manutenção: acção de conservar, de fazer durar.
debruçar-se (sobre): interessar-se e examinar com atenção.
descurar: não dar a atenção devida.
ajustar-se (a): adaptar-se uma coisa a outra na forma ou dimensão, de forma a ficar justa.
diferir: deixar para outra ocasião, adiar, retardar
Repare nas expressões “discussão em curso” (em andamento, no momento actual), “impactos ambientais”, “terceira via”, “depois dos investimentos devidamente rentabilizados”.
Repare:
“antes de o Laboratório Nacional de Engenharia Civil […] se pronunciar…”; “No caso de a Portela ter de ser definitivamente abandonada…”
Quando a preposição de antecede uma oração com verbo no infinitivo não se contrai com o artigo que pode começar essa oração.
Dicionário:
erário público: conjunto dos recursos económicos e financeiros do Estado.
incidir (em): recair sobre.
manutenção: acção de conservar, de fazer durar.
debruçar-se (sobre): interessar-se e examinar com atenção.
descurar: não dar a atenção devida.
ajustar-se (a): adaptar-se uma coisa a outra na forma ou dimensão, de forma a ficar justa.
diferir: deixar para outra ocasião, adiar, retardar
Repare nas expressões “discussão em curso” (em andamento, no momento actual), “impactos ambientais”, “terceira via”, “depois dos investimentos devidamente rentabilizados”.
Repare:
“antes de o Laboratório Nacional de Engenharia Civil […] se pronunciar…”; “No caso de a Portela ter de ser definitivamente abandonada…”
Quando a preposição de antecede uma oração com verbo no infinitivo não se contrai com o artigo que pode começar essa oração.
23/11/07
Um poema por semana
Imagem: Henri Matisse, Platane, 1951
Adeus, de Eugénio de Andrade
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
in Os Amantes sem Dinheiro (1950)
Adeus, de Eugénio de Andrade
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
in Os Amantes sem Dinheiro (1950)
Os blogues dos outros - 4
Do blogue Ana de Amesterdam (leia aqui o texto original, com foto de um pirliteiro)
Pirliteiro
(Publicado por Ana na quinta-feira, 22 de Novembro de 2007)
Lembro-me bem dessa árvore. Dos ramos espinhosos nasciam folhas enceradas e pequenas que faziam lembrar asas frágeis de insecto. Na Primavera a árvore cobria-se com umas flores de tule branco, muito tolas e perfumadas. Durante o Outono, a árvore vestia-se com uma sobrepeliz de frutos pequeninos, vermelhos, que pareciam romãs e cresciam em cachos. Quis muitas vezes trincar aquelas maçãs liliputianas. Tomar-lhes o gosto. Porém, a tia Dé, quando me via perto de tal árvore, as mãos fechadas escondendo as bagas, abria muitos os olhos. Adivinhando a vontade que eu tinha de as trincar, corria a gritar que tais frutos eram altamente venenosos, que certa vez lhe aparecera no hospital um menino, coitadinho, tão pequenino, muito, muito doente por ter comido umas bagas daquelas. Os médicos, contava ela em alarido, tiveram de lhe enfiar um tubo duro de plástico até ao estômago para o livrar de uma morte certa. Depois dava-me palmadas nas mãos até eu as abrir e largar os frutos vermelhos. Nunca soube o nome de tal árvore. Encontrava-a no jardim do Campo de Santana, talhada em sebes vivas. Também a encontrava nos jardins do Seminário dos Olivais onde o cheiro estival das amoras maduras e o crocitar dos grilos tornavam as tardes de Agosto muito mais quentes. Sempre que via tal arvorezinha vinha-me de dentro uma vontade urgente de lhe trincar os frutos. Mas logo me lembrava dos avisos da minha tia. Imaginava, então, que se trincasse uma daquelas bagas vermelhas cairia redonda no chão tal qual a branca de neve quando provou a luzidia maçã. Se provasse as bagas de tal árvore, era certo e sabido, que passaria o resto da vida enfiada num esquife frio de cristal. Por isso, em obediência à minha tia, nunca mastiguei os pequenos frutos. Apertava-os nas mãos até os esmagar. Uma decepção profunda tomava conta de mim quando lhes via o interior grumoso e pálido. Queria que tivessem um corpo rubro, sinal de doçura, como o dos diospiros. Hoje, quando cruzo o parque da fundação, ignoro os avisos civilizados que aconselham a não pisar a relva e a não apanhar flores, folhas, frutos. Apanho meia dúzia de bagas das árvores que crescem junto do centro de arte moderna. Enfio-as nos bolsos. As bagas continuam sem cheiro. A superfície polida, nacarada, faz-me lembrar um tempo incerto em que fui feliz. Apodrecem nos meus bolsos até ao dia em que resolver metê-las à boca.
(Ontem, lendo certo livro, para além de merovíngios castelos, descobri que a arvorezinha da minha infância se chama pirliteiro e que os seus frutos se chamam pirlitos. Fiquei esfuziante com a descoberta. Como se um sol pequenino nascesse das páginas do livro. É tão importante conhecer o nome das coisas. E, hoje, vagabundeando pela net, descobri que se pode fazer marmelada de pirlitos. Tamanha revelação deixou-me atordoada. Hei-de fazer uma marmelada de pirlitos e dá-la a provar à minha pobre tia.)
Dicionário:
enceradas: polidas com se lhes tivessem passado cera ou que tem a cor a cera.
flores de tule: flores pequenas, usadas para decoração.
romã: fruto da romãzeira, redondo e com casca avermelhada, que encerra grande quantidade de bagos vermelhos e sumarentos (em francês, “grenade”).
liliputianas: muito pequenas (de Liliput, país imaginário habitado por anões do livro Viagens de Gulliver, do escritor inglês J. Swift).
bagas: grão ou fruto pequeno e arredondado.
esquife: caixão para transportar cadáveres para a sepultura.
diospiros: fruto do diospireiro, que consiste numa baga grande, alaranjada, muito apreciada pela sua doçura (em francês, “kaki”).
nacarada: que tem (a cor do) nácar, substância calcária, branca, rosada, brilhante, com reflexos irisados, que reveste interiormente as conchas de vários moluscos.
esfuziante: muito alegre; que irrompe em riso.
Repare nas expressões “tomar-lhes o gosto”, “em alarido” (ruidosamente, agitadamente), “era certo e sabido”, “dar a provar (a)”.
Com o auxílio do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa.
Pirliteiro
(Publicado por Ana na quinta-feira, 22 de Novembro de 2007)
Lembro-me bem dessa árvore. Dos ramos espinhosos nasciam folhas enceradas e pequenas que faziam lembrar asas frágeis de insecto. Na Primavera a árvore cobria-se com umas flores de tule branco, muito tolas e perfumadas. Durante o Outono, a árvore vestia-se com uma sobrepeliz de frutos pequeninos, vermelhos, que pareciam romãs e cresciam em cachos. Quis muitas vezes trincar aquelas maçãs liliputianas. Tomar-lhes o gosto. Porém, a tia Dé, quando me via perto de tal árvore, as mãos fechadas escondendo as bagas, abria muitos os olhos. Adivinhando a vontade que eu tinha de as trincar, corria a gritar que tais frutos eram altamente venenosos, que certa vez lhe aparecera no hospital um menino, coitadinho, tão pequenino, muito, muito doente por ter comido umas bagas daquelas. Os médicos, contava ela em alarido, tiveram de lhe enfiar um tubo duro de plástico até ao estômago para o livrar de uma morte certa. Depois dava-me palmadas nas mãos até eu as abrir e largar os frutos vermelhos. Nunca soube o nome de tal árvore. Encontrava-a no jardim do Campo de Santana, talhada em sebes vivas. Também a encontrava nos jardins do Seminário dos Olivais onde o cheiro estival das amoras maduras e o crocitar dos grilos tornavam as tardes de Agosto muito mais quentes. Sempre que via tal arvorezinha vinha-me de dentro uma vontade urgente de lhe trincar os frutos. Mas logo me lembrava dos avisos da minha tia. Imaginava, então, que se trincasse uma daquelas bagas vermelhas cairia redonda no chão tal qual a branca de neve quando provou a luzidia maçã. Se provasse as bagas de tal árvore, era certo e sabido, que passaria o resto da vida enfiada num esquife frio de cristal. Por isso, em obediência à minha tia, nunca mastiguei os pequenos frutos. Apertava-os nas mãos até os esmagar. Uma decepção profunda tomava conta de mim quando lhes via o interior grumoso e pálido. Queria que tivessem um corpo rubro, sinal de doçura, como o dos diospiros. Hoje, quando cruzo o parque da fundação, ignoro os avisos civilizados que aconselham a não pisar a relva e a não apanhar flores, folhas, frutos. Apanho meia dúzia de bagas das árvores que crescem junto do centro de arte moderna. Enfio-as nos bolsos. As bagas continuam sem cheiro. A superfície polida, nacarada, faz-me lembrar um tempo incerto em que fui feliz. Apodrecem nos meus bolsos até ao dia em que resolver metê-las à boca.
(Ontem, lendo certo livro, para além de merovíngios castelos, descobri que a arvorezinha da minha infância se chama pirliteiro e que os seus frutos se chamam pirlitos. Fiquei esfuziante com a descoberta. Como se um sol pequenino nascesse das páginas do livro. É tão importante conhecer o nome das coisas. E, hoje, vagabundeando pela net, descobri que se pode fazer marmelada de pirlitos. Tamanha revelação deixou-me atordoada. Hei-de fazer uma marmelada de pirlitos e dá-la a provar à minha pobre tia.)
Dicionário:
enceradas: polidas com se lhes tivessem passado cera ou que tem a cor a cera.
flores de tule: flores pequenas, usadas para decoração.
romã: fruto da romãzeira, redondo e com casca avermelhada, que encerra grande quantidade de bagos vermelhos e sumarentos (em francês, “grenade”).
liliputianas: muito pequenas (de Liliput, país imaginário habitado por anões do livro Viagens de Gulliver, do escritor inglês J. Swift).
bagas: grão ou fruto pequeno e arredondado.
esquife: caixão para transportar cadáveres para a sepultura.
diospiros: fruto do diospireiro, que consiste numa baga grande, alaranjada, muito apreciada pela sua doçura (em francês, “kaki”).
nacarada: que tem (a cor do) nácar, substância calcária, branca, rosada, brilhante, com reflexos irisados, que reveste interiormente as conchas de vários moluscos.
esfuziante: muito alegre; que irrompe em riso.
Repare nas expressões “tomar-lhes o gosto”, “em alarido” (ruidosamente, agitadamente), “era certo e sabido”, “dar a provar (a)”.
Com o auxílio do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa.
22/11/07
Os blogues dos outros - 3
Do blogue Zero de Conduta (texto original, com ligações e acesso ao vídeo promocional do Kindle, aqui)
Kindle Garden
(Publicado por Pedro Sales, na quarta-feira, 21 de Novembro de 2007)
Seria suposto que a digitalização de uma parte crescente dos conteúdos culturais conduzisse a uma maior liberdade do consumidor. Afinal, a grande vantagem da imaterialização dos suportes deveria ser a possibilidade da sua utilização em vários aparelhos. Em casa, no computador ou televisor, mas também na rua, com os cada vez mais presentes leitores de mp3, computadores portáteis ou mesmo telemóveis. A convergência de formatos tratava do resto. Nada mais errado. A cada novo aparelho e moda digital aumentam as restrições à sua utilização e difusão.
O novo menino bonito da imprensa mundial é o mais recente exemplo dessa tendência. Lançado com grande fanfarra na capa da Newsweek, o Kindle é o aparelho com que a Amazon diz pretender revolucionar a forma como lidamos e lemos os livros. Trata-se de um pequeno, e leve, aparelho digital que serve para ler versões electrónicas dos livros. O Kindle é tão caro quanto feio, custando 400 dólares, e permite também aceder, através de uma rede sem fios, aos conteúdos de blogues e jornais na net.
Como é normal, fora da fanfarra fica a leitura das pequeninas letras que limitam a sua utilidade. Um livro podemos comprar e emprestar. Com o Kindle não. Para além de usar um formato proprietário que só pode ser comprado na Amazon, mesmo depois de adquir o livro não o podemos guardar no computador nem emprestar a quem quer que tenha o mesmo aparelho. Se o Kindle se avariar a Amazon diz que devolve os livros já comprados, o que até pode ser verdade, mas fica sempre a questão do que acontece se o formato não vingar e a Amazon se desinteressar do mesmo. Não é uma mera questão académica, tendo já acontecido com o Google Vídeo. A coisa não funcionou bem, a empresa fechou o serviço e todos quantos tinham comprado os filmes nesse formato ficaram sem o dinheiro e sem filmes.
Mas o pior são mesmo as características mais “modernas” do aparelho. O Kindle permite ler ficheiros Word ou Pdf. Mas têm que ser enviados, previamente, para a Amazon para serem convertidos. Um serviço que é pago! Outra das grandes vantagens do novo suporte, diz a Amazon, é que permite aceder, através de uma rede sem fios, à versão electrónica de vários jornais e blogues. É verdade, mas só os 250 seleccionados pela cadeia electrónica. Para aceder a essa possibilidade tem que se pagar uma mensalidade à empresa. Ou seja, os blogues e jornais que se podem consultar gratuitamente com um portátil ou pda, no Kindle têm que se pagar. É uma das características mais curiosas da economia digital. Cobrar pelo que sempre foi gratuito e “vender-nos” o produto como uma grande revolução.
A maioria da imprensa internacional, e o Público (que colocou uma setinha ascendente ao dono da Amazon, dizendo que está a "abrir novas portas ao prazer de ler"), acham que o futuro da leitura passa por aqui. Se o futuro é pagarmos para lermos livros digitais que não podemos emprestar, imprimir, ou guardar num aparelho que não seja da Amazon - e que não nos oferece nenhumas garantias de que existirá daqui a uma década - então, como dizia o José Mário Branco no FMI, "que se foda o futuro, que se foda o progresso".
Dicionário
fanfarra: toque de trompetas e clarins, ária triunfal ou guerreira executada em paradas.
Repare nas expressões “se o formato não vingar” (se o formato não for bem sucedido, se não tiver sucesso), “uma mera questão académica”, “que se foda” (expressão grosseira que indica desprezo ou desinteresse – um equivalente familiar: “que se lixe”)
José Mário Branco é um importante cantor de intervenção português; FMI é o nome de um dos seus trabalhos, um texto com música gravado num espectáculo e publicado em 1982.
Kindle Garden
(Publicado por Pedro Sales, na quarta-feira, 21 de Novembro de 2007)
Seria suposto que a digitalização de uma parte crescente dos conteúdos culturais conduzisse a uma maior liberdade do consumidor. Afinal, a grande vantagem da imaterialização dos suportes deveria ser a possibilidade da sua utilização em vários aparelhos. Em casa, no computador ou televisor, mas também na rua, com os cada vez mais presentes leitores de mp3, computadores portáteis ou mesmo telemóveis. A convergência de formatos tratava do resto. Nada mais errado. A cada novo aparelho e moda digital aumentam as restrições à sua utilização e difusão.
O novo menino bonito da imprensa mundial é o mais recente exemplo dessa tendência. Lançado com grande fanfarra na capa da Newsweek, o Kindle é o aparelho com que a Amazon diz pretender revolucionar a forma como lidamos e lemos os livros. Trata-se de um pequeno, e leve, aparelho digital que serve para ler versões electrónicas dos livros. O Kindle é tão caro quanto feio, custando 400 dólares, e permite também aceder, através de uma rede sem fios, aos conteúdos de blogues e jornais na net.
Como é normal, fora da fanfarra fica a leitura das pequeninas letras que limitam a sua utilidade. Um livro podemos comprar e emprestar. Com o Kindle não. Para além de usar um formato proprietário que só pode ser comprado na Amazon, mesmo depois de adquir o livro não o podemos guardar no computador nem emprestar a quem quer que tenha o mesmo aparelho. Se o Kindle se avariar a Amazon diz que devolve os livros já comprados, o que até pode ser verdade, mas fica sempre a questão do que acontece se o formato não vingar e a Amazon se desinteressar do mesmo. Não é uma mera questão académica, tendo já acontecido com o Google Vídeo. A coisa não funcionou bem, a empresa fechou o serviço e todos quantos tinham comprado os filmes nesse formato ficaram sem o dinheiro e sem filmes.
Mas o pior são mesmo as características mais “modernas” do aparelho. O Kindle permite ler ficheiros Word ou Pdf. Mas têm que ser enviados, previamente, para a Amazon para serem convertidos. Um serviço que é pago! Outra das grandes vantagens do novo suporte, diz a Amazon, é que permite aceder, através de uma rede sem fios, à versão electrónica de vários jornais e blogues. É verdade, mas só os 250 seleccionados pela cadeia electrónica. Para aceder a essa possibilidade tem que se pagar uma mensalidade à empresa. Ou seja, os blogues e jornais que se podem consultar gratuitamente com um portátil ou pda, no Kindle têm que se pagar. É uma das características mais curiosas da economia digital. Cobrar pelo que sempre foi gratuito e “vender-nos” o produto como uma grande revolução.
A maioria da imprensa internacional, e o Público (que colocou uma setinha ascendente ao dono da Amazon, dizendo que está a "abrir novas portas ao prazer de ler"), acham que o futuro da leitura passa por aqui. Se o futuro é pagarmos para lermos livros digitais que não podemos emprestar, imprimir, ou guardar num aparelho que não seja da Amazon - e que não nos oferece nenhumas garantias de que existirá daqui a uma década - então, como dizia o José Mário Branco no FMI, "que se foda o futuro, que se foda o progresso".
Dicionário
fanfarra: toque de trompetas e clarins, ária triunfal ou guerreira executada em paradas.
Repare nas expressões “se o formato não vingar” (se o formato não for bem sucedido, se não tiver sucesso), “uma mera questão académica”, “que se foda” (expressão grosseira que indica desprezo ou desinteresse – um equivalente familiar: “que se lixe”)
José Mário Branco é um importante cantor de intervenção português; FMI é o nome de um dos seus trabalhos, um texto com música gravado num espectáculo e publicado em 1982.
20/11/07
Os blogues dos outros - 2
Do blogue Arte Photographica, por Sérgio B. Gomes
À conversa com… [o fotógrafo] Martin Parr
(Publicado por Sérgio B. Gomes, na segunda-feira, 19 de Novembro de 2007)
De vez em quando, Martin Parr gosta de surpreender. De vez em quando o fotógrafo da Magnum gosta de saltar fora do slideshow rotineiro, da muito british camisa aos quadradinhos e deslizar para o puro entretenimento. Basta provocá-lo. Ainda este ano, nos Encontros de Fotografia de Arles, em França, Parr protagonizou um dos momentos do festival quando, depois da conferência, alguém lhe pediu para posar em tronco nu, tal qual o autoretrato digital em que aparece num corpo musculado que – nota-se logo – não é o seu. A pelica esbranquiçada ao léu provocou a gargalhada geral, o fotógrafo inglês incluído.
Durante a apresentação do seu trabalho na ArteLisboa, na semana passada, a convite da Fundação Carmona e Costa, Martin Parr, 55 anos, não foi assim tão espontâneo, mas surpreendeu uma sala meio vazia que muitas vezes não conteve o riso perante as imagens projectadas. E isso, na obra de Parr, pode ser um bom sinal. Porque é pelo humor, a par da sedução e do excesso, que nos mostra os rituais sociais de massa, a forma como vive o Ocidente e a forma como gostamos de nos mostrar aos outros.Este inglês de ironia refinada não está interessado em denunciar o “lado pobre” e a miséria em que está atolada uma parte do mundo. Prefere fazer a crítica mordaz ao “lado rico”, ao “Ocidente saudável” e à “vida espampanante do século XXI”.Encontrámo-nos num hotel do Parque das Nações, em Lisboa, às 8h em ponto. Martin queria aproveitar o resto da manhã para saber mais acerca dos livros de fotografia publicados durante a ditadura salazarista, um dos temas que tem movido a sua curiosidade ultimamente.
(excerto da entrevista)
As imagens que procura estão normalmente associadas a rituais sociais de massa ligados ao consumismo. Usa a fotografia como uma crítica a essa voragem despesista?
Muitas vezes é uma crítica à sociedade, mas não é só isso, porque também me estou a criticar a mim. O mundo tem muito dinheiro a rodar e ultimamente isso tem sido um grande problema. Eu sou parte do problema e você também. Você pode não pensar muito nisso, faz parte do Ocidente saudável. E todas as pessoas que vão ler isto também são parte do problema.
Está toda a gente a dizer que a culpa é dos outros, mas o que é certo é que a culpa é nossa. Mas ninguém vai abandonar o estilo de vida espampanante do século XXI. Estamos a caminho do fim, porque o mundo não consegue sustentar este tipo de crescimento. E já que vamos por aí abaixo, ao menos que o façamos de uma forma divertida. A gastar todo o dinheiro possível.
Este centro comercial que há aqui em frente [aponta para o Centro Comercial Vasco da Gama] é uma coisa de doidos. Ontem à noite fui lá e mal me podia mexer. É suposto Portugal ser um dos países mais pobres da Europa, mas olhamos à nossa volta e só vemos carros.
Leia o resto da entrevista e veja fotografias de Martin Parr no blogue Arte Photographica, aqui.
Dicionário:
rotineiro: que faz parte da rotina, do quotidiano.
atolada: enterrada, sem se poder libertar (literalmente, presa num atoleiro, num lugar de solo mole, cheio de lama ou lodo, onde se pode ficar preso)
espampanante: extravagante, exuberante
Repare nos termos “posar em tronco nu”, “mover a curiosidade”, “crítica mordaz” (crítica severa, áspera), “vamos por ir aí abaixo”, “mal se poder mexer”.
À conversa com… [o fotógrafo] Martin Parr
(Publicado por Sérgio B. Gomes, na segunda-feira, 19 de Novembro de 2007)
De vez em quando, Martin Parr gosta de surpreender. De vez em quando o fotógrafo da Magnum gosta de saltar fora do slideshow rotineiro, da muito british camisa aos quadradinhos e deslizar para o puro entretenimento. Basta provocá-lo. Ainda este ano, nos Encontros de Fotografia de Arles, em França, Parr protagonizou um dos momentos do festival quando, depois da conferência, alguém lhe pediu para posar em tronco nu, tal qual o autoretrato digital em que aparece num corpo musculado que – nota-se logo – não é o seu. A pelica esbranquiçada ao léu provocou a gargalhada geral, o fotógrafo inglês incluído.
Durante a apresentação do seu trabalho na ArteLisboa, na semana passada, a convite da Fundação Carmona e Costa, Martin Parr, 55 anos, não foi assim tão espontâneo, mas surpreendeu uma sala meio vazia que muitas vezes não conteve o riso perante as imagens projectadas. E isso, na obra de Parr, pode ser um bom sinal. Porque é pelo humor, a par da sedução e do excesso, que nos mostra os rituais sociais de massa, a forma como vive o Ocidente e a forma como gostamos de nos mostrar aos outros.Este inglês de ironia refinada não está interessado em denunciar o “lado pobre” e a miséria em que está atolada uma parte do mundo. Prefere fazer a crítica mordaz ao “lado rico”, ao “Ocidente saudável” e à “vida espampanante do século XXI”.Encontrámo-nos num hotel do Parque das Nações, em Lisboa, às 8h em ponto. Martin queria aproveitar o resto da manhã para saber mais acerca dos livros de fotografia publicados durante a ditadura salazarista, um dos temas que tem movido a sua curiosidade ultimamente.
(excerto da entrevista)
As imagens que procura estão normalmente associadas a rituais sociais de massa ligados ao consumismo. Usa a fotografia como uma crítica a essa voragem despesista?
Muitas vezes é uma crítica à sociedade, mas não é só isso, porque também me estou a criticar a mim. O mundo tem muito dinheiro a rodar e ultimamente isso tem sido um grande problema. Eu sou parte do problema e você também. Você pode não pensar muito nisso, faz parte do Ocidente saudável. E todas as pessoas que vão ler isto também são parte do problema.
Está toda a gente a dizer que a culpa é dos outros, mas o que é certo é que a culpa é nossa. Mas ninguém vai abandonar o estilo de vida espampanante do século XXI. Estamos a caminho do fim, porque o mundo não consegue sustentar este tipo de crescimento. E já que vamos por aí abaixo, ao menos que o façamos de uma forma divertida. A gastar todo o dinheiro possível.
Este centro comercial que há aqui em frente [aponta para o Centro Comercial Vasco da Gama] é uma coisa de doidos. Ontem à noite fui lá e mal me podia mexer. É suposto Portugal ser um dos países mais pobres da Europa, mas olhamos à nossa volta e só vemos carros.
Leia o resto da entrevista e veja fotografias de Martin Parr no blogue Arte Photographica, aqui.
Dicionário:
rotineiro: que faz parte da rotina, do quotidiano.
atolada: enterrada, sem se poder libertar (literalmente, presa num atoleiro, num lugar de solo mole, cheio de lama ou lodo, onde se pode ficar preso)
espampanante: extravagante, exuberante
Repare nos termos “posar em tronco nu”, “mover a curiosidade”, “crítica mordaz” (crítica severa, áspera), “vamos por ir aí abaixo”, “mal se poder mexer”.
Os blogues dos outros - 1
Do blogue O Mundo Perfeito (texto original aqui)
De como a minha mãe enganou o meu pai durante 38 anos
(Publicado por Isabela, no domingo, 18 de Novembro de 2007)
Toda a vida ouvi a minha mãe queixar-se do custo de vida. O pão estava caro, bem como os grelos e o peixe. "Sabes quanto me custou este molho de agriões? Dois escudos. Isto não são agriões; isto é fogo." O dinheiro nunca chegava. Era a conversa à mesa, ao jantar, já na recuada década de 60. "Mas precisas de mais dinheiro para esta semana?", perguntava-lhe o meu pai. Precisava. Precisava sempre. Mesmo comprando do mais barato, o dinheiro nunca chegava.
Só por volta dos 10, 11 anos percebi para onde ia parte do dinheiro que o meu pai lhe entregava para governo da casa, o qual ela alegava ser insuficiente: economizava-o para nós. Para comprar tecidos para os nossos vestidos, para as calças do meu pai, e para as prendas do Natal. Para os nossos ganchinhos. Literalmente para as nossas coisinhas: uma bandolete para mim, uma bisnaga de creme Tokalon para o seu rosto. Escondia o dinheiro num frasco ou numa lata, em sítios onde o meu pai não tocasse, o que era fácil: o meu pai era um grande macho: não tocava em nada. Quando conseguia que lhe desse dinheiro contado para uns sapatos de que eu precisava, podia então comprar-mos, e mais umas calças. Chegadas a casa, mentia-lhe de novo, afirmando que tinha conseguido um desconto especial, que comprara as duas peças pelo preço de uma. O meu pai alegrava-se por ter arranjado esposa tão poupada, e engolia as mentiras, radiante. Os homens são fáceis de enganar, é uma constatação bastamente documentada.
Mais velha, assisti, calada e divertida, e até ajudei, às mentiras que a minha mãe pregava ao meu pai. Regressávamos das compras, e ela avisava-me: "vamos dizer-lhe que isto custou x". Sempre o dobro. O meu pai nunca deve ter ouvido um preço certo, enquanto viveu connosco. O custo de vida esteve sempre, para ele, muito sobreavaliado. Fui-me rindo em surdina, e nunca me desmanchei. Ao longo dos anos verifiquei que as outras mulheres faziam o mesmo. As que trabalhavam fora de casa também mentiam nos preços aos maridos, conseguindo guardar, incógnito, algum dinheiro para os filhos, e um mínimo de purpurina. Primas, mães de amigas. Sem nunca comunicarem sobre este assunto, todas procediam da mesma forma. Era uma forma de sobrevivência. Um ridículo, mas justo pagamento que se atribuíam pelo trabalho não considerado que desenvolviam em casa. Uma gorjeta.
Lembrei-me disto porque a minha mãe passa a vida a queixar-se-me sobre o dinheiro. Que é pouco. A reforma é baixa. Mas, quando menos espero, pergunta-me, "precisas de dinheiro?", e mete-me 10 euros na mala, para tomar um café. Claro que isto, meus amigos, não tem preço.
Dicionário:
grelos – haste de certas plantas, como couves e nabos, bastante consumido em Portugal (no entanto, os grelos são provenientes da Galiza, servindo para preparar o famoso caldo galego); são também consumidos na China e em Itália, na região de Nápoles, sob o nome de “friarielli” (em França, são conhecidos por “brocoli-rave” ou “brocoli italien”).
agriões – plantas usadas na alimentação, frequente em locais húmidos ou junto às margens dos ribeiros (conhecidas em França sob a designação “cresson de fontaine”).
ganchinhos – arames dobrados usados pelas mulheres para manter o cabelo segurado ou apanhado.
radiante – muito contente.
Repare nas expressões: “governo da casa”, “dinheiro contado”, “pregar mentiras”, “rir em surdina” (rir para si, rir para dentro), “desmanchar-se” (não conseguir manter a seriedade, sobretudo quando se conta uma mentira – “desmanchar-se a rir”).
Com o auxílio do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa.
De como a minha mãe enganou o meu pai durante 38 anos
(Publicado por Isabela, no domingo, 18 de Novembro de 2007)
Toda a vida ouvi a minha mãe queixar-se do custo de vida. O pão estava caro, bem como os grelos e o peixe. "Sabes quanto me custou este molho de agriões? Dois escudos. Isto não são agriões; isto é fogo." O dinheiro nunca chegava. Era a conversa à mesa, ao jantar, já na recuada década de 60. "Mas precisas de mais dinheiro para esta semana?", perguntava-lhe o meu pai. Precisava. Precisava sempre. Mesmo comprando do mais barato, o dinheiro nunca chegava.
Só por volta dos 10, 11 anos percebi para onde ia parte do dinheiro que o meu pai lhe entregava para governo da casa, o qual ela alegava ser insuficiente: economizava-o para nós. Para comprar tecidos para os nossos vestidos, para as calças do meu pai, e para as prendas do Natal. Para os nossos ganchinhos. Literalmente para as nossas coisinhas: uma bandolete para mim, uma bisnaga de creme Tokalon para o seu rosto. Escondia o dinheiro num frasco ou numa lata, em sítios onde o meu pai não tocasse, o que era fácil: o meu pai era um grande macho: não tocava em nada. Quando conseguia que lhe desse dinheiro contado para uns sapatos de que eu precisava, podia então comprar-mos, e mais umas calças. Chegadas a casa, mentia-lhe de novo, afirmando que tinha conseguido um desconto especial, que comprara as duas peças pelo preço de uma. O meu pai alegrava-se por ter arranjado esposa tão poupada, e engolia as mentiras, radiante. Os homens são fáceis de enganar, é uma constatação bastamente documentada.
Mais velha, assisti, calada e divertida, e até ajudei, às mentiras que a minha mãe pregava ao meu pai. Regressávamos das compras, e ela avisava-me: "vamos dizer-lhe que isto custou x". Sempre o dobro. O meu pai nunca deve ter ouvido um preço certo, enquanto viveu connosco. O custo de vida esteve sempre, para ele, muito sobreavaliado. Fui-me rindo em surdina, e nunca me desmanchei. Ao longo dos anos verifiquei que as outras mulheres faziam o mesmo. As que trabalhavam fora de casa também mentiam nos preços aos maridos, conseguindo guardar, incógnito, algum dinheiro para os filhos, e um mínimo de purpurina. Primas, mães de amigas. Sem nunca comunicarem sobre este assunto, todas procediam da mesma forma. Era uma forma de sobrevivência. Um ridículo, mas justo pagamento que se atribuíam pelo trabalho não considerado que desenvolviam em casa. Uma gorjeta.
Lembrei-me disto porque a minha mãe passa a vida a queixar-se-me sobre o dinheiro. Que é pouco. A reforma é baixa. Mas, quando menos espero, pergunta-me, "precisas de dinheiro?", e mete-me 10 euros na mala, para tomar um café. Claro que isto, meus amigos, não tem preço.
Dicionário:
grelos – haste de certas plantas, como couves e nabos, bastante consumido em Portugal (no entanto, os grelos são provenientes da Galiza, servindo para preparar o famoso caldo galego); são também consumidos na China e em Itália, na região de Nápoles, sob o nome de “friarielli” (em França, são conhecidos por “brocoli-rave” ou “brocoli italien”).
agriões – plantas usadas na alimentação, frequente em locais húmidos ou junto às margens dos ribeiros (conhecidas em França sob a designação “cresson de fontaine”).
ganchinhos – arames dobrados usados pelas mulheres para manter o cabelo segurado ou apanhado.
radiante – muito contente.
Repare nas expressões: “governo da casa”, “dinheiro contado”, “pregar mentiras”, “rir em surdina” (rir para si, rir para dentro), “desmanchar-se” (não conseguir manter a seriedade, sobretudo quando se conta uma mentira – “desmanchar-se a rir”).
Com o auxílio do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa.
Os blogues dos outros - apresentação
19/11/07
15/11/07
Boa semana!
Tatuagens (letra e música de Mafalda Veiga)
por Mafalda Veiga e Jorge Palma
Em cada gesto perdido
Tu és igual a mim
Em cada ferida que sara
Escondida do mundo
Eu sou igual a ti
Fazes pinturas de guerra
Que eu não sei apagar
Pintas o sol da cor da terra
E a lua da cor do mar
Em cada grito de alma
Eu sou igual a ti
De cada vez que um olhar
Te alucina e te prende
Tu és igual a mim
Fazes pinturas de sonhos
Pintas o sol na minha mão
E és mistura de vento e lama
Entre os luares perdidos no chão
Em cada noite sem rumo
Tu és igual a mim
De cada vez que procuro
Preciso um abrigo
Eu sou igual a ti
Faço pinturas de guerra
Que eu não sei apagar
E pinto a lua da cor da terra
E o sol da cor do mar
Em cada grito afundado
Eu sou igual a ti
De cada vez que a tremura
Desata o desejo
Tu és igual a mim
Fazes pinturas de sonhos
E pinto a lua na tua mão
Misturo o vento e a lama
Piso os luares perdidos no chão
Jorge Palma (1950-) é um dos mais interessantes compositores portugueses. Lançou o primeiro disco, Viagem na Palma da Mão, em 1975. As músicas e as letras de canções como “Deixa-me rir”, “Frágil” e “Bairro do Amor” constituem momentos marcantes do panorama musical português do período pós-25 de Abril (ouça algumas destas músicas aqui). Palma integrou vários grupos, mantendo sempre, no entanto, uma carreira a solo.
Mafalda Veiga (1965-) estreou-se em 1983 com o álbum Pássaros do Sul, que teve um bom acolhimento da crítica e do público. Desde então, vem construindo uma carreira de sucesso assente em canções agradáveis, que ficam na memória, e num público fiel. A música “Tatuagens”, em dueto com Jorge Palma, faz parte do disco Tatuagem, de 1999.
Visite os sítios oficiais de Jorge Palma (aqui) e de Mafalda Veiga (aqui).
por Mafalda Veiga e Jorge Palma
Em cada gesto perdido
Tu és igual a mim
Em cada ferida que sara
Escondida do mundo
Eu sou igual a ti
Fazes pinturas de guerra
Que eu não sei apagar
Pintas o sol da cor da terra
E a lua da cor do mar
Em cada grito de alma
Eu sou igual a ti
De cada vez que um olhar
Te alucina e te prende
Tu és igual a mim
Fazes pinturas de sonhos
Pintas o sol na minha mão
E és mistura de vento e lama
Entre os luares perdidos no chão
Em cada noite sem rumo
Tu és igual a mim
De cada vez que procuro
Preciso um abrigo
Eu sou igual a ti
Faço pinturas de guerra
Que eu não sei apagar
E pinto a lua da cor da terra
E o sol da cor do mar
Em cada grito afundado
Eu sou igual a ti
De cada vez que a tremura
Desata o desejo
Tu és igual a mim
Fazes pinturas de sonhos
E pinto a lua na tua mão
Misturo o vento e a lama
Piso os luares perdidos no chão
Jorge Palma (1950-) é um dos mais interessantes compositores portugueses. Lançou o primeiro disco, Viagem na Palma da Mão, em 1975. As músicas e as letras de canções como “Deixa-me rir”, “Frágil” e “Bairro do Amor” constituem momentos marcantes do panorama musical português do período pós-25 de Abril (ouça algumas destas músicas aqui). Palma integrou vários grupos, mantendo sempre, no entanto, uma carreira a solo.
Mafalda Veiga (1965-) estreou-se em 1983 com o álbum Pássaros do Sul, que teve um bom acolhimento da crítica e do público. Desde então, vem construindo uma carreira de sucesso assente em canções agradáveis, que ficam na memória, e num público fiel. A música “Tatuagens”, em dueto com Jorge Palma, faz parte do disco Tatuagem, de 1999.
Visite os sítios oficiais de Jorge Palma (aqui) e de Mafalda Veiga (aqui).
Um poema por semana
Os Amantes sem Dinheiro, de Eugénio de Andrade
Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
in Os Amantes sem Dinheiro (1950)
Eugénio de Andrade (1923-2005) tornou-se uma referência para a poesia portuguesa logo aquando da sua estreia, com os livros As Mãos sem Fruto e Os Amantes Sem Dinheiro (ambos do fim da década de 40). Os seus poemas são geralmente curtos, seguindo a senda da mais antiga tradição lírica portuguesa, e revalorizam a palavra concreta e simples e a melodia interior do poema. A sua poesia invoca o amor através de imagens e de metáforas, mas é também marcada por uma certa sensualidade, pela presença do corpo e dos sentidos. Tendo ganho importantes prémios (entre os quais o prémio Camões, em 2001), Eugénio de Andrade distinguiu-se também como tradutor e como organizador de antologias de poesia – por exemplo, a sua Antologia Pessoal de Poesia Portuguesa, de 1999, é uma das mais consultadas actualmente.
Descubra aqui a biografia de Eugénio de Andrade do Centro Virtual Camões.
Existe uma fundação com o seu nome. Descubra-a aqui.
Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
in Os Amantes sem Dinheiro (1950)
Eugénio de Andrade (1923-2005) tornou-se uma referência para a poesia portuguesa logo aquando da sua estreia, com os livros As Mãos sem Fruto e Os Amantes Sem Dinheiro (ambos do fim da década de 40). Os seus poemas são geralmente curtos, seguindo a senda da mais antiga tradição lírica portuguesa, e revalorizam a palavra concreta e simples e a melodia interior do poema. A sua poesia invoca o amor através de imagens e de metáforas, mas é também marcada por uma certa sensualidade, pela presença do corpo e dos sentidos. Tendo ganho importantes prémios (entre os quais o prémio Camões, em 2001), Eugénio de Andrade distinguiu-se também como tradutor e como organizador de antologias de poesia – por exemplo, a sua Antologia Pessoal de Poesia Portuguesa, de 1999, é uma das mais consultadas actualmente.
Descubra aqui a biografia de Eugénio de Andrade do Centro Virtual Camões.
Existe uma fundação com o seu nome. Descubra-a aqui.
Desavenças 4
Chatear-se, aborrecer-se
“Chatear-se” ou “aborrecer-se” com alguém pode ter vários sentidos.
“A Rosa chateou-se com o Alfredo porque ele não quis emprestar o apartamento do Estoril a duas amigas dela de Braga”
“O Tó e a Carla chatearam-se, já não estão juntos”
“Sabrina, vou-te dizer uma coisa, mas promete que não te aborreces comigo… Essa saia não fica nada bem com essa blusa”
No primeiro exemplo, a Rosa ficou desiludida com a atitude do amigo; o seu ressentimento pode ser ou não duradouro. O segundo exemplo constata o fim de uma relação: “chatearam-se”, acabou. No último exemplo, teme-se que a opinião manifestada possa ser levada a mal (ou seja, que a Sabrina se ofenda com o comentário) mas o tipo de aborrecimento que daí possa surgir não é, em princípio, muito forte.
Por vezes, o termo também pode ser usado para indicar a tristeza ou o desgosto causado por algo inesperado (exemplo: “Ficou muito aborrecida por o filho se ter esquecido do aniversário dela”).
“Chatear-se” ou “aborrecer-se” com alguém pode ter vários sentidos.
“A Rosa chateou-se com o Alfredo porque ele não quis emprestar o apartamento do Estoril a duas amigas dela de Braga”
“O Tó e a Carla chatearam-se, já não estão juntos”
“Sabrina, vou-te dizer uma coisa, mas promete que não te aborreces comigo… Essa saia não fica nada bem com essa blusa”
No primeiro exemplo, a Rosa ficou desiludida com a atitude do amigo; o seu ressentimento pode ser ou não duradouro. O segundo exemplo constata o fim de uma relação: “chatearam-se”, acabou. No último exemplo, teme-se que a opinião manifestada possa ser levada a mal (ou seja, que a Sabrina se ofenda com o comentário) mas o tipo de aborrecimento que daí possa surgir não é, em princípio, muito forte.
Por vezes, o termo também pode ser usado para indicar a tristeza ou o desgosto causado por algo inesperado (exemplo: “Ficou muito aborrecida por o filho se ter esquecido do aniversário dela”).
Desavenças 3
Brigar
O termo “brigar” (do gótico brĭkan, que significa “romper”, “quebrar”), actualmente mais frequente no Brasil do que em Portugal, pode referir-se a uma disputa verbal ou física, com ou sem consequências de maior. Vejam-se os exemplos:
“Os noivos brigaram e decidiram anular o casamento”
“O João e a Ana tiveram uma briga parva por causa de uma resposta ao Trivial e andaram amuados por uns tempos, mas depois passou-lhes”
“No sábado à noite, o Artur saiu com os antigos colegas da faculdade, embebedou-se e meteu-se numa briga”
Na primeira frase, a briga, no sentido de “discussão”, é séria, implicando uma quebra de relações – depreende-se que a discussão é verbal e/ou ideológica. Na segunda, a briga, que é comparada a um simples amuo, é superficial: foi ocasionada por um jogo de sociedade e teve curta duração (e, no entanto, “brigas parvas” como a do exemplo podem implicar também uma quebra de relações). Na terceira frase, o termo briga equivale ao termo “rixa”, isto é, disputa entre duas ou mais pessoas, geralmente acompanhada de violência física (o Artur terá chegado a casa com algumas nódoas negras).
Na última acepção do termo, brigar significa lutar e tem como sinónimo “bulhar”. As crianças, por exemplo, “andam à bulha”, isto é, tentam magoar-se fisicamente. À “bulha” (termo de origem castelhana que significa ruído) está associada uma certa confusão, imaginando-se uma luta ruidosa, cheia de gritos e ofensas, e capaz de levantar poeira (reveja-se a imagem de Calvin e Hobbes que inaugura esta série Desavenças). Uma outra expressão para andar à bulha é “chegar a vias de facto”.
O termo “brigar” (do gótico brĭkan, que significa “romper”, “quebrar”), actualmente mais frequente no Brasil do que em Portugal, pode referir-se a uma disputa verbal ou física, com ou sem consequências de maior. Vejam-se os exemplos:
“Os noivos brigaram e decidiram anular o casamento”
“O João e a Ana tiveram uma briga parva por causa de uma resposta ao Trivial e andaram amuados por uns tempos, mas depois passou-lhes”
“No sábado à noite, o Artur saiu com os antigos colegas da faculdade, embebedou-se e meteu-se numa briga”
Na primeira frase, a briga, no sentido de “discussão”, é séria, implicando uma quebra de relações – depreende-se que a discussão é verbal e/ou ideológica. Na segunda, a briga, que é comparada a um simples amuo, é superficial: foi ocasionada por um jogo de sociedade e teve curta duração (e, no entanto, “brigas parvas” como a do exemplo podem implicar também uma quebra de relações). Na terceira frase, o termo briga equivale ao termo “rixa”, isto é, disputa entre duas ou mais pessoas, geralmente acompanhada de violência física (o Artur terá chegado a casa com algumas nódoas negras).
Na última acepção do termo, brigar significa lutar e tem como sinónimo “bulhar”. As crianças, por exemplo, “andam à bulha”, isto é, tentam magoar-se fisicamente. À “bulha” (termo de origem castelhana que significa ruído) está associada uma certa confusão, imaginando-se uma luta ruidosa, cheia de gritos e ofensas, e capaz de levantar poeira (reveja-se a imagem de Calvin e Hobbes que inaugura esta série Desavenças). Uma outra expressão para andar à bulha é “chegar a vias de facto”.
Desavenças 2
Pegar-se
Significa “entrar em confronto verbal ou físico com uma pessoa; estarem reciprocamente em conflito”, de acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciência de Lisboa.
“Na última aula de francês, a Laurinda e o Ricardo pegaram-se a propósito de um comentário dele que ela considerou machista”.
“Os dois primos, que nunca se deram bem, pegaram-se no jantar de Natal e os familiares tiveram de os separar”.
No primeiro exemplo, depreende-se que o confronto é verbal: os alunos “pegaram-se”, certamente esgrimindo argumentos contrários com alguma animosidade e poderão mesmo ter chegado a formular ofensas. Mas a frase dificilmente permite pensar que a Laurinda e o Ricardo se agrediram fisicamente na sala de aula.
No segundo exemplo, é bastante provável que a agressão tenha sido física e que os primos tenham andado à bulha. Pode-se, nesse caso, especificar: “pegaram-se à bofetada”, “pegaram-se ao murro”, “pegaram-se ao pontapé”.
Significa “entrar em confronto verbal ou físico com uma pessoa; estarem reciprocamente em conflito”, de acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciência de Lisboa.
“Na última aula de francês, a Laurinda e o Ricardo pegaram-se a propósito de um comentário dele que ela considerou machista”.
“Os dois primos, que nunca se deram bem, pegaram-se no jantar de Natal e os familiares tiveram de os separar”.
No primeiro exemplo, depreende-se que o confronto é verbal: os alunos “pegaram-se”, certamente esgrimindo argumentos contrários com alguma animosidade e poderão mesmo ter chegado a formular ofensas. Mas a frase dificilmente permite pensar que a Laurinda e o Ricardo se agrediram fisicamente na sala de aula.
No segundo exemplo, é bastante provável que a agressão tenha sido física e que os primos tenham andado à bulha. Pode-se, nesse caso, especificar: “pegaram-se à bofetada”, “pegaram-se ao murro”, “pegaram-se ao pontapé”.
Desavenças 1
Embirrar
Embirrar com alguém significa “sentir desagrado, antipatia ou aversão” por essa pessoa, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciência de Lisboa. A birra, que se aproxima do capricho ou da teimosia, tem geralmente motivos pouco fundamentados (por isso se diz também que as crianças “fazem birra” quando choram e se irritam sem motivo). Assim, podemos embirrar com uma pessoa sem saber explicar porquê, simplesmente por não gostarmos do tom de voz dessa pessoa ou porque a forma como ri nos irrita.
No entanto, geralmente embirramos com pessoas muito diferentes de nós.
Não é raro que à birra se alie um certo sentimento de superioridade: por exemplo, na frase “Embirro com a Natália, está sempre a falar alto e a contar a vida dela a toda a gente” depreende-se que quem fala considera a postura da Natália inferior à sua.
Por outro lado, também é possível que a birra seja motivada por despeito ou da inveja: isso é evidente na frase “Embirro com o Nicolau, tem sempre uma opinião para dar sobre tudo e toda a gente acha que ele é o máximo”.
Até aqui, o “embirrar” mantém-se como sentimento privado, que pode não transparecer: quantos alunos não embirram profundamente com um professor sem o darem a entender ao longo de todo um ano lectivo! (e vice-versa).
Mas o verbo pode empregar-se também quando a animosidade é manifesta. Neste caso, segundo o mesmo dicionário, embirrar significa “dirigir a alguém comentários desagradáveis ou repreensões, geralmente injustificados”. É o caso do professor que embirra com um aluno e o faz notar ostensivamente através, por exemplo, de comentários jocosos e humilhantes ou do adolescente mal-humorado que embirra com toda a gente, criando um ambiente desagradável (diz-se nesse caso que ele é embirrento).
Por fim, o sentimento explícito de animosidade pode ser recíproco - como se vê na frase “É melhor não convidarmos para a mesma festa a Clara e a Luísa, elas embirram uma com a outra” - e pode ou não vir a ter consequências.
Embirrar com alguém significa “sentir desagrado, antipatia ou aversão” por essa pessoa, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciência de Lisboa. A birra, que se aproxima do capricho ou da teimosia, tem geralmente motivos pouco fundamentados (por isso se diz também que as crianças “fazem birra” quando choram e se irritam sem motivo). Assim, podemos embirrar com uma pessoa sem saber explicar porquê, simplesmente por não gostarmos do tom de voz dessa pessoa ou porque a forma como ri nos irrita.
No entanto, geralmente embirramos com pessoas muito diferentes de nós.
Não é raro que à birra se alie um certo sentimento de superioridade: por exemplo, na frase “Embirro com a Natália, está sempre a falar alto e a contar a vida dela a toda a gente” depreende-se que quem fala considera a postura da Natália inferior à sua.
Por outro lado, também é possível que a birra seja motivada por despeito ou da inveja: isso é evidente na frase “Embirro com o Nicolau, tem sempre uma opinião para dar sobre tudo e toda a gente acha que ele é o máximo”.
Até aqui, o “embirrar” mantém-se como sentimento privado, que pode não transparecer: quantos alunos não embirram profundamente com um professor sem o darem a entender ao longo de todo um ano lectivo! (e vice-versa).
Mas o verbo pode empregar-se também quando a animosidade é manifesta. Neste caso, segundo o mesmo dicionário, embirrar significa “dirigir a alguém comentários desagradáveis ou repreensões, geralmente injustificados”. É o caso do professor que embirra com um aluno e o faz notar ostensivamente através, por exemplo, de comentários jocosos e humilhantes ou do adolescente mal-humorado que embirra com toda a gente, criando um ambiente desagradável (diz-se nesse caso que ele é embirrento).
Por fim, o sentimento explícito de animosidade pode ser recíproco - como se vê na frase “É melhor não convidarmos para a mesma festa a Clara e a Luísa, elas embirram uma com a outra” - e pode ou não vir a ter consequências.
"Odeio-te"
10/11/07
Um poema por semana
Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal, de Sophia de Mello Breyner Andresen
Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória a luz e o brilho do teu ser,
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mas servirei senhor que possa morrer.
in Mar Novo (1958)
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) é considerada a mais importante poetisa portuguesa. Descendente de uma família de raízes nórdicas, desenvolveu um enorme fascínio pelo Mediterrâneo e, principalmente, pelo mundo clássico grego, que se tornou uma influência fundamental na sua vida e na sua poesia. Misturam-se, assim, na sua obra, o Norte e o Sul, o Atlântico e o Mediterrâneo. Na sua poesia sente-se uma grande admiração pela dimensão ética das civilizações clássicas, pelos valores da liberdade e da justiça (aliás, antes do 25 de Abril de 1974, Sophia fez parte de diversas organizações de resistência à ditadura, e foi depois deputada da Assembleia Constituinte de 1976). A sua poesia procura a simplicidade e a exactidão: os seus poemas são breves, claros, luminosos, limpos. Segundo a sua visão do trabalho poético, o poeta é um mediador entre os deuses e os homens, um descobridor. Também por isso, há na sua obra um enorme fascínio pelo universo das viagens, de Ulisses aos descobridores portugueses. Para além de poesia, Sophia escreveu livros para crianças (A Menina do Mar, A Fada Oriana, O cavaleiro da Dinamarca), uma peça de teatro (Colar) e traduções. Pelo conjunto da sua obra recebeu importantes prémios, como o prémio Camões (o mais importante prémio para autores lusófonos) em 1999, o prémio francês Max Jacob Étranger em 2001 ou o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana em 2003.
Descubra aqui a biografia de Sophia de Mello Beyner Andresen do Centro Virtual Camões.
Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória a luz e o brilho do teu ser,
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mas servirei senhor que possa morrer.
in Mar Novo (1958)
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) é considerada a mais importante poetisa portuguesa. Descendente de uma família de raízes nórdicas, desenvolveu um enorme fascínio pelo Mediterrâneo e, principalmente, pelo mundo clássico grego, que se tornou uma influência fundamental na sua vida e na sua poesia. Misturam-se, assim, na sua obra, o Norte e o Sul, o Atlântico e o Mediterrâneo. Na sua poesia sente-se uma grande admiração pela dimensão ética das civilizações clássicas, pelos valores da liberdade e da justiça (aliás, antes do 25 de Abril de 1974, Sophia fez parte de diversas organizações de resistência à ditadura, e foi depois deputada da Assembleia Constituinte de 1976). A sua poesia procura a simplicidade e a exactidão: os seus poemas são breves, claros, luminosos, limpos. Segundo a sua visão do trabalho poético, o poeta é um mediador entre os deuses e os homens, um descobridor. Também por isso, há na sua obra um enorme fascínio pelo universo das viagens, de Ulisses aos descobridores portugueses. Para além de poesia, Sophia escreveu livros para crianças (A Menina do Mar, A Fada Oriana, O cavaleiro da Dinamarca), uma peça de teatro (Colar) e traduções. Pelo conjunto da sua obra recebeu importantes prémios, como o prémio Camões (o mais importante prémio para autores lusófonos) em 1999, o prémio francês Max Jacob Étranger em 2001 ou o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana em 2003.
Descubra aqui a biografia de Sophia de Mello Beyner Andresen do Centro Virtual Camões.
07/11/07
Maria Albertina, como foste nessa...
Maria Albertina, letra e música de António Variações
por Camané (Humanos)
Maria Albertina deixa que eu te diga
Ah… Maria Albertina deixa que eu te diga
Esse teu nome eu sei que não é um espanto
Mas, é cá da terra e tem, tem muito encanto
Esse teu nome eu sei que não é um espanto
Mas, é cá da terra e tem, tem muito encanto
Maria Albertina como foste nessa
De chamar Vanessa à tua menina?
Maria Albertina como foste nessa
De chamar Vanessa à tua menina?
Que é bem cheiinha e é muito moreninha
Que é bem cheiinha e é muito moreninha
Que é bem cheiinha e é muito moreninha
Que é bem cheiinha e é muito moreninha
por Camané (Humanos)
Maria Albertina deixa que eu te diga
Ah… Maria Albertina deixa que eu te diga
Esse teu nome eu sei que não é um espanto
Mas, é cá da terra e tem, tem muito encanto
Esse teu nome eu sei que não é um espanto
Mas, é cá da terra e tem, tem muito encanto
Maria Albertina como foste nessa
De chamar Vanessa à tua menina?
Maria Albertina como foste nessa
De chamar Vanessa à tua menina?
Que é bem cheiinha e é muito moreninha
Que é bem cheiinha e é muito moreninha
Que é bem cheiinha e é muito moreninha
Que é bem cheiinha e é muito moreninha
02/11/07
Um poema por semana
Imagem: Goya, O Três de Maio de 1808, 1814
Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya (1959), de Jorge de Sena
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue».
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Lisboa, 25/6/1959, in Metamorfoses (1963)
Jorge de Sena (1919-1978) foi um poeta, ficcionista e ensaísta português. Grande conhecedor e divulgador da cultura nacional e permeável à cultura universal, Jorge de Sena viveu boa parte da sua vida no Brasil e nos Estados Unidos. A sua obra poética, ancorada no tempo histórico em que viveu, afirma a necessidade de se ser livre no mundo. Nela se conciliam o mundo clássico e o moderno, bem como o rigor e a busca do “excessivo”. Para além da excelente poesia, dos livros de contos e do romance Sinais de Fogo, salienta-se a novela O Físico Prodigioso, ímpar na literatura portuguesa.
Consulte aqui a biografia de Jorge de Sena do Centro Virtual Camões.
Mais informações sobre o quadro de Goya aqui.
Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya (1959), de Jorge de Sena
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue».
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Lisboa, 25/6/1959, in Metamorfoses (1963)
Jorge de Sena (1919-1978) foi um poeta, ficcionista e ensaísta português. Grande conhecedor e divulgador da cultura nacional e permeável à cultura universal, Jorge de Sena viveu boa parte da sua vida no Brasil e nos Estados Unidos. A sua obra poética, ancorada no tempo histórico em que viveu, afirma a necessidade de se ser livre no mundo. Nela se conciliam o mundo clássico e o moderno, bem como o rigor e a busca do “excessivo”. Para além da excelente poesia, dos livros de contos e do romance Sinais de Fogo, salienta-se a novela O Físico Prodigioso, ímpar na literatura portuguesa.
Consulte aqui a biografia de Jorge de Sena do Centro Virtual Camões.
Mais informações sobre o quadro de Goya aqui.
Mais uma dos Humanos
Muda de Vida, letra e música de António Variações
por Manuela Azevedo (Humanos)
Muda de vida se tu não vives satisfeito
Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar
Muda de vida, não deves viver contrafeito
Muda de vida, se há vida em ti a latejar
Ver-te sorrir eu nunca te vi
E a cantar, eu nunca te ouvi
Será de ti ou pensas que tens… que ser assim?...
Olha que a vida não, não é nem deve ser
Como um castigo que tu terás que viver
por Manuela Azevedo (Humanos)
Muda de vida se tu não vives satisfeito
Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar
Muda de vida, não deves viver contrafeito
Muda de vida, se há vida em ti a latejar
Ver-te sorrir eu nunca te vi
E a cantar, eu nunca te ouvi
Será de ti ou pensas que tens… que ser assim?...
Olha que a vida não, não é nem deve ser
Como um castigo que tu terás que viver
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