22/11/07

Os blogues dos outros - 3

Do blogue Zero de Conduta (texto original, com ligações e acesso ao vídeo promocional do Kindle, aqui)

Kindle Garden
(Publicado por Pedro Sales, na quarta-feira, 21 de Novembro de 2007)

Seria suposto que a digitalização de uma parte crescente dos conteúdos culturais conduzisse a uma maior liberdade do consumidor. Afinal, a grande vantagem da imaterialização dos suportes deveria ser a possibilidade da sua utilização em vários aparelhos. Em casa, no computador ou televisor, mas também na rua, com os cada vez mais presentes leitores de mp3, computadores portáteis ou mesmo telemóveis. A convergência de formatos tratava do resto. Nada mais errado. A cada novo aparelho e moda digital aumentam as restrições à sua utilização e difusão.
O novo menino bonito da imprensa mundial é o mais recente exemplo dessa tendência. Lançado com grande fanfarra na capa da Newsweek, o Kindle é o aparelho com que a Amazon diz pretender revolucionar a forma como lidamos e lemos os livros. Trata-se de um pequeno, e leve, aparelho digital que serve para ler versões electrónicas dos livros. O Kindle é tão caro quanto feio, custando 400 dólares, e permite também aceder, através de uma rede sem fios, aos conteúdos de blogues e jornais na net.
Como é normal, fora da fanfarra fica a leitura das pequeninas letras que limitam a sua utilidade. Um livro podemos comprar e emprestar. Com o Kindle não. Para além de usar um formato proprietário que só pode ser comprado na Amazon, mesmo depois de adquir o livro não o podemos guardar no computador nem emprestar a quem quer que tenha o mesmo aparelho. Se o Kindle se avariar a Amazon diz que devolve os livros já comprados, o que até pode ser verdade, mas fica sempre a questão do que acontece se o formato não vingar e a Amazon se desinteressar do mesmo. Não é uma mera questão académica, tendo já acontecido com o Google Vídeo. A coisa não funcionou bem, a empresa fechou o serviço e todos quantos tinham comprado os filmes nesse formato ficaram sem o dinheiro e sem filmes.
Mas o pior são mesmo as características mais “modernas” do aparelho. O Kindle permite ler ficheiros Word ou Pdf. Mas têm que ser enviados, previamente, para a Amazon para serem convertidos. Um serviço que é pago! Outra das grandes vantagens do novo suporte, diz a Amazon, é que permite aceder, através de uma rede sem fios, à versão electrónica de vários jornais e blogues. É verdade, mas só os 250 seleccionados pela cadeia electrónica. Para aceder a essa possibilidade tem que se pagar uma mensalidade à empresa. Ou seja, os blogues e jornais que se podem consultar gratuitamente com um portátil ou pda, no Kindle têm que se pagar. É uma das características mais curiosas da economia digital. Cobrar pelo que sempre foi gratuito e “vender-nos” o produto como uma grande revolução.
A maioria da imprensa internacional, e o Público (que colocou uma setinha ascendente ao dono da Amazon, dizendo que está a "abrir novas portas ao prazer de ler"), acham que o futuro da leitura passa por aqui. Se o futuro é pagarmos para lermos livros digitais que não podemos emprestar, imprimir, ou guardar num aparelho que não seja da Amazon - e que não nos oferece nenhumas garantias de que existirá daqui a uma década - então, como dizia o José Mário Branco no FMI, "que se foda o futuro, que se foda o progresso".


Dicionário
fanfarra
: toque de trompetas e clarins, ária triunfal ou guerreira executada em paradas.
Repare nas expressões “se o formato não vingar” (se o formato não for bem sucedido, se não tiver sucesso), “uma mera questão académica”, “que se foda” (expressão grosseira que indica desprezo ou desinteresse – um equivalente familiar: “que se lixe”)
José Mário Branco é um importante cantor de intervenção português; FMI é o nome de um dos seus trabalhos, um texto com música gravado num espectáculo e publicado em 1982.

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