30/11/07

Um poema por semana

O nome do cão, por Manuel António Pina

O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,

mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.

Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,

nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava

ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.

Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.

Então sonhava
o sonho sólido em que existia.
E não compreendia.

Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.

Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.

E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.

E a minha mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: «É a vida…»

17/2/90, in Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança (1999)

Manuel António Pina (1943) é um poeta, jornalista e cronista português. A sua obra inclui também vários livros infanto-juvenis (é um dos mais destacados autores portugueses a escreverem para esse público), peças de teatro e uma novela, Os Papéis de K. É actualmente colunista da revista Visão, fazendo frequentemente uso de ironia nas suas crónicas. A sua poesia é marcadamente auto-reflexiva, sendo a memória um dos seus temas privilegiados.

Encontre aqui uma biografia de Manuel António Pina (sítio da Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas).

Imagem: uma buganvília