Do blogue O Mundo Perfeito (texto original aqui)
De como a minha mãe enganou o meu pai durante 38 anos
(Publicado por Isabela, no domingo, 18 de Novembro de 2007)
Toda a vida ouvi a minha mãe queixar-se do custo de vida. O pão estava caro, bem como os grelos e o peixe. "Sabes quanto me custou este molho de agriões? Dois escudos. Isto não são agriões; isto é fogo." O dinheiro nunca chegava. Era a conversa à mesa, ao jantar, já na recuada década de 60. "Mas precisas de mais dinheiro para esta semana?", perguntava-lhe o meu pai. Precisava. Precisava sempre. Mesmo comprando do mais barato, o dinheiro nunca chegava.
Só por volta dos 10, 11 anos percebi para onde ia parte do dinheiro que o meu pai lhe entregava para governo da casa, o qual ela alegava ser insuficiente: economizava-o para nós. Para comprar tecidos para os nossos vestidos, para as calças do meu pai, e para as prendas do Natal. Para os nossos ganchinhos. Literalmente para as nossas coisinhas: uma bandolete para mim, uma bisnaga de creme Tokalon para o seu rosto. Escondia o dinheiro num frasco ou numa lata, em sítios onde o meu pai não tocasse, o que era fácil: o meu pai era um grande macho: não tocava em nada. Quando conseguia que lhe desse dinheiro contado para uns sapatos de que eu precisava, podia então comprar-mos, e mais umas calças. Chegadas a casa, mentia-lhe de novo, afirmando que tinha conseguido um desconto especial, que comprara as duas peças pelo preço de uma. O meu pai alegrava-se por ter arranjado esposa tão poupada, e engolia as mentiras, radiante. Os homens são fáceis de enganar, é uma constatação bastamente documentada.
Mais velha, assisti, calada e divertida, e até ajudei, às mentiras que a minha mãe pregava ao meu pai. Regressávamos das compras, e ela avisava-me: "vamos dizer-lhe que isto custou x". Sempre o dobro. O meu pai nunca deve ter ouvido um preço certo, enquanto viveu connosco. O custo de vida esteve sempre, para ele, muito sobreavaliado. Fui-me rindo em surdina, e nunca me desmanchei. Ao longo dos anos verifiquei que as outras mulheres faziam o mesmo. As que trabalhavam fora de casa também mentiam nos preços aos maridos, conseguindo guardar, incógnito, algum dinheiro para os filhos, e um mínimo de purpurina. Primas, mães de amigas. Sem nunca comunicarem sobre este assunto, todas procediam da mesma forma. Era uma forma de sobrevivência. Um ridículo, mas justo pagamento que se atribuíam pelo trabalho não considerado que desenvolviam em casa. Uma gorjeta.
Lembrei-me disto porque a minha mãe passa a vida a queixar-se-me sobre o dinheiro. Que é pouco. A reforma é baixa. Mas, quando menos espero, pergunta-me, "precisas de dinheiro?", e mete-me 10 euros na mala, para tomar um café. Claro que isto, meus amigos, não tem preço.
Dicionário:
grelos – haste de certas plantas, como couves e nabos, bastante consumido em Portugal (no entanto, os grelos são provenientes da Galiza, servindo para preparar o famoso caldo galego); são também consumidos na China e em Itália, na região de Nápoles, sob o nome de “friarielli” (em França, são conhecidos por “brocoli-rave” ou “brocoli italien”).
agriões – plantas usadas na alimentação, frequente em locais húmidos ou junto às margens dos ribeiros (conhecidas em França sob a designação “cresson de fontaine”).
ganchinhos – arames dobrados usados pelas mulheres para manter o cabelo segurado ou apanhado.
radiante – muito contente.
Repare nas expressões: “governo da casa”, “dinheiro contado”, “pregar mentiras”, “rir em surdina” (rir para si, rir para dentro), “desmanchar-se” (não conseguir manter a seriedade, sobretudo quando se conta uma mentira – “desmanchar-se a rir”).
Com o auxílio do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa.
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